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sexta-feira, 15 de maio de 2015

REFLEXÃO PARA O DIA DA FAMÍLIA

A Família Sagrada




Suponho que ninguém mais duvide de que aquela família representada no comercial de margarina, perfeita e harmônica, não se encontra na Bíblia. Muito ao contrário: os exemplos de composição familiar que encontramos nas páginas das Sagradas Escrituras não são nada idealizados.
Nem mesmo a chamada “Sagrada Família” (de nosso Senhor Jesus Cristo) se salva. Começa que Maria engravidou antes de se casar. Não muito depois de Jesus completar 12 anos, pelo que se sabe, José morre. Desde então, a família sagrada passou a se constituir de uma viúva e seus órfãos.
Jesus também não se parece lá muito com o filho queridinho, do tipo que toda mãe gostaria ter. Alguns episódios até nos fazem pensar que Jesus bem mereceria umas boas palmadas. Certa ocasião, numa festa de casamento, sua mãe lhe pede para ajudar numa situação constrangedora, porque se acabara um dos principais elementos do cardápio da festa. Jesus lhe dá uma resposta atravessada: “Mulher, que tenho eu contigo?” (cf. Jo 2).

Doutra feita, vieram avisar Jesus de que sua mãe, seus irmãos e irmãs estavam à porta, e queriam falar-lhe. Ele teria respondido que aqueles não eram seus verdadeiros familiares: “Quem são minha mãe, irmão e irmã, senão aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a praticam” (cf. Mt 12.48-49, Mc 3.33-34 e Lc 8.20-21). Ainda insinua que aqueles à porta não ouvem nem praticam a Palavra de Deus. Esse jeito de falar não é exatamente o que chamaríamos de gentil.
A Bíblia não esconde esses conflitos e tensões familiares, talvez para nos confortar e tranquilizar em relação ao fato de que tampouco nossas famílias são perfeitas.

No entanto, há muito a aprendermos com a “Família Sagrada”. Por essa razão, gostaria de tomar como referência para nossa reflexão o relato de Lucas 2.40-52:

Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele. Ora, anualmente iam seus pais a Jerusalém, para a Festa da Páscoa. Quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa. Terminados os dias da festa, ao regressarem, permaneceu o menino Jesus em Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. Pensando, porém, estar ele entre os companheiros de viagem, foram caminho de um dia e, então, passaram a procurá-lo entre os parentes e os conhecidos; e, não o tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à sua procura. Três dias depois, o acharam no templo, assentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. E todos os que o ouviam muito se admiravam da sua inteligência e das suas respostas. Logo que seus pais o viram, ficaram maravilhados; e sua mãe lhe disse: Filho, por que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura. Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai? Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera. E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava todas estas coisas no coração. E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.

Este episódio tem uma moldura literária: “Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (v. 40) e “crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (v. 52).  O que nos permite inferir que esta é a missão da família: Possibilitar o crescimento dos seus integrantes em sabedoria, estatura e graça!
O texto bíblico em questão nos oferece ainda ótimas instruções a respeito de como a família chega a cumprir essa missão.

A importância das solenidades cíclicas
Nos versos 41 e 42 lemos: “Anualmente iam a Jerusalém, para a Festa da Páscoa. Quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa” (vs. 41-42).
Destaquei as palavras “anualmente”, “festa” e “costume”, para evidenciar a importância das solenidades cíclicas na formação das novas gerações. Comemorar reiteradamente certas datas e ocasiões, longe de serem consideradas tolas repetições, ou algum tipo de paganismo, são, sim, fundamentais para a construção da nossa identidade como indivíduo e como povo. Acontecimentos como esses nos conferem o que chamamos “cultura”.

Encarar essas solenidades como “festa” é outro dado significativo. Aprender uma cultura não deve ser penoso ou desagradável, mas ocasião de deleite e prazer.  “Costume” é outro elemento fundamental: não há aprendizado sem rotina, repetição, inculcação. É importante observar que “costume” nunca é mera repetição. Toda vez que tornamos a celebrar (a Páscoa, o Natal, o Pentecostes…) nunca repetimos, simplesmente, antes ressignificamos, presentificamos, atualizamos o sentido dessas solenidades. A criança que celebra a Páscoa aos 12 anos de idade terá uma compreensão diferente da que teve quando celebrou a mesma festa aos 5, ou aos 8 anos, ou da que terá aos 50 ou 60.

(Note-se, também, a significativa contribuição das viagens e deslocamentos na formação de identidade. É conhecendo pessoas, topografias, hábitos diferentes dos nossos que teremos melhores condições de dimensionar e significar o que nos é próprio. Não há identidade sem alteridade!)

A importância da autonomia
O episódio dramático da “perda” do menino pelos pais não nos ensina somente que precisamos ficar atentos aos nossos filhos para não perdê-los de vista em meio à multidão…
Dá-nos, mais que isso, uma grande lição sobre autonomia, e revela de uma maneira surpreendente o quanto nós, pais, tendemos a subestimar nossas crianças. Os pais pensavam encontrar-se o menino entre os conhecidos. Nessas ocasiões, sempre se viajava em grupo, junto com parentes e vizinhos. Seria normal esperar que estivesse entre seus amiguinhos, primos, irmãos… brincando… Quem haveria de supor que ele estaria interessado em algo mais do que brincadeiras?
Não há crescimento saudável sem a experiência da autonomia. Crescer é um processo contínuo rumo à independência. Para alguns pais isso traz angústia e sofrimento. Mas aqueles que superprotegem seus filhos, que os sufocam com vigilância excessiva, os impedem de crescer saudavelmente e causam-lhe danos irreparáveis.

 A importância do diálogo com os especialistas
As crianças gostam, sim de brincar, mas há algo que lhes é irresistível: o desejo de aprender. Três dias depois, Maria e José finalmente encontraram Jesus “no templo, assentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. E todos os que o ouviam muito se admiravam da sua inteligência e das suas respostas” (vs. 46-470).

Jesus interagia com os doutores: “ouvia”, “interrogava” e “respondia”. Eu já havia escrito em outro texto que é uma pena que já não se façam muitos doutores como esses do tempo de Jesus. Na maioria das vezes os especialistas não têm paciência pra conversar com as crianças. No máximo estariam dispostos a discursar para elas, porque acham que não têm o que aprender com elas. Aqueles doutores ficaram admiradíssimos com a inteligência e as respostas de Jesus como qualquer um de nós ficaria, se nos dedicássemos a ouvir com atenção as nossas crianças.

Já dizia o jagunço Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende.”
Porque é assim que se aprende: no encontro de experiências entre pessoas diferentes. Ambas as gerações, a dos jovens e a dos antigos, têm perguntas importantes a fazer umas às outras, e podem oferecer respostas igualmente relevantes. Mas isso só será possível se ambos se dispuserem ao diálogo: os mais velhos e os mais jovens, juntos, conversando… que acontecimento admirável!

A importância do enfrentamento honesto dos conflitos entre as gerações
Quando os pais e o menino perdido se acham, rola um clima tenso: “Logo que seus pais o viram, ficaram maravilhados; e sua mãe lhe disse: Filho, por que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura. Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai? Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera. E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso” (vs. 48-51).

Há um misto de emoções, sentimentos e reações: admiração, aflição, angústia e, certamente, alívio pelo reencontro, da parte dos pais; certa indiferença, inconformismo e petulância, da parte do filho.
Os pais “não compreenderam as palavras que Jesus lhes dissera” (v. 50). Essa não é a exceção, mas a regra no convívio entre as diferentes gerações: desentendimento, confronto, contenda, contrariedade, controvérsia, desacordo, desajuste, desamor, desarmonia, desavença, desconcerto, diferença, dificuldade, discordância, discórdia, discrepância, discussão, disputa, dissensão, dissentimento, dissidência, dissintonia, divergência, hostilidade, inadequação, incompatibilidade, inconformidade, inimizade, litígio, luta, mal-entendido, malquerença, oposição… e assim por diante.

Se assim foi entre Jesus e seus pais, por que não seria também conosco? Ajuda, no entanto, saber que é assim, e que temos que lidar com isso da melhor forma. No episódio com Jesus, ambos, os pais e o menino, puderam expressar-se francamente sobre seus sentimentos. Os pais falam da sua angústia, e o filho explica a sua perspectiva das coisas.

É importante notar, no entanto, que, na sequência, o menino se submete à autoridade dos pais e volta para Nazaré com eles. Os conflitos e os desentendimentos são inevitáveis, mas o convívio familiar tem a primazia. Há ocasiões em que aos filhos se dá liberdade e autonomia, mas há outras em que não resta alternativa a não ser a da “submissão”. Não há como deixar a critério da criança se ela quer ou não tomar vacinas, usar o cinto de segurança, ou coisas do gênero. Algumas dessas decisões são inegociáveis, e sábios e felizes aqueles que conseguem distinguir essas das transigíveis.

Concluindo…
A mãe de Jesus, “porém, guardava todas estas coisas no coração” (v. 51).  Que bonito costume têm os antigos de guardar no coração as memórias significativas de seus encontros e desencontros com as novas gerações. Quanto aprendizado, quanto crescimento, quanto amadurecimento para ambos!
Quando as novas gerações têm o privilégio de conviver com pais, como José e Maria foram para Jesus, e com Doutores, como aqueles que lhe dispensaram tempo e atenção qualitativos, o resultado é maravilhoso:

“E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (v. 52).

Reformulemos a ordem dos fatores para fins didáticos. Primeiro, crescimento em estatura é o resultado do cuidado com o corpo, com a saúde, com a alimentação, a higiene… quesitos básico para viabilizar todos os demais tipos de crescimento. Podemos falar, então, do crescimento em sabedoria, que é o resultado do cuidado intelectual e espiritual, que faz com que as informações se transformem em conhecimento, e o conhecimento em atitudes dignas e honradas. Finalmente, chegamos ao crescimento em graça, que é o mais sublime de todos, porque é a expressão de que quando crescemos, não crescemos somente para nós mesmos, mas crescemos para “Deus” e para os “homens”.

Em outras palavras, é para isso que crescemos, para estarmos digna e honradamente diante de Deus e do nosso semelhante, preparados para amá-los e sermos amados por ambos.


Luiz Carlos Ramos
(Para a Revista Gaivota Metodista, em maio de 2012)