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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

FIM DA OBRIGATORIEDADE DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA GERA ENSINO MUTILADO



Conversa Afiada reproduz artigo de Vladimir Safatle na Fel-lha:
Fim da obrigatoriedade de filosofia e sociologia gera ensino mutilado
Na semana passada, o relator da medida provisória sobre as modificações do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de "governo", fez algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre elas, ele sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser disciplinas de fato e se transformem em "conteúdos transversais" lecionados em aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham seguir uma concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam mais oferecidos como disciplinas autônomas, o que vai contra todo o discurso a respeito de oferecer mais condições para os alunos aprofundarem seus interesses efetivos.
Essa consideração do senhor relator nos leva, no entanto, a colocar questões a respeito da importância do ensino de filosofia e sociologia para adolescentes. Afinal, devem nossos adolescentes aprender filosofia e sociologia? Pois é claro que a proposta de reduzi-las a "conteúdos transversais" é apenas uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um professor de história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria condições de tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à docência.
Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia e sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser eliminadas como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem elas. Mas coloquemos a questão implícita neste debate na sua forma correta, a saber: por que há setores da sociedade brasileira que se incomodam tanto com seus filhos aprendendo filosofia e sociologia?
Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de incômodo, mas de uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação seria garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há de se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes brasileiros são sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como línguas e matemática. Melhor então focar o essencial.
No entanto, tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é o melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em mutação, como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão tomar melhores decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado, se seus conhecimentos de línguas e matemática são deficitários, não é por alguma forma de "excesso" de disciplinas, mas pela péssima qualidade de nossas escolas, pela precarização de nossos professores (só o Estado de São Paulo perdeu 44.500 professores apenas nos últimos dois anos) e pela ausência de cultura literária de muitas famílias.
Nesse sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e sociologia. O ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o desenvolvimento de algumas habilidades fundamentais. Lembremos de ao menos três: a capacidade de constituir problemas a partir da crítica a pressupostos aparentemente naturalizados, a capacidade de articular problemas em campos aparentemente dispersos, desenvolvendo assim um forte pensamento de relações e quebrando a tendência atual em isolar o pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto significa ser capaz, por exemplo, de compreender como questões éticas têm relações com questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de lógica, entre outras.
Por fim, e esta é sua característica mais impressionante, o aprendizado da filosofia pressupõe a capacidade de pensar como um outro. Lembro-me de um professor que, ao ver muita pressa em "refutar" Descartes, olhou para mim com sua sabedoria costumeira e disse: "Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe". Ou seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para poder se contrapor com mais propriedade.
Bem, é isto que alguns querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que querem isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar, de uma vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos, como Condorcet, quem dizia: "A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar".

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

SOBRE A PETROBRÁS ...




Um dia um dos maiores geólogos americanos afirmou em um estudo que não havia muito petróleo no Brasil. Nosso povo, teimosamente, não acreditou. Foi para as ruas, com a liderança de Getúlio Vargas, e criou a Petrobrás em 1953. O povo imaginou que esse estudo era mais uma mentira para nos fazer acreditar que não era possível nosso antigo sonho de acabar ou ao menos reduzir significativamente a pobreza. Sim, um dia os brasileiros sonharam. Um dia o Brasil sonhou junto o mesmo sonho. Nosso sonho mais ambicioso foi a Petrobrás. Naquela época, ninguém no Brasil entendia de petróleo, refinarias, maquinário pesado. Mas havia muita fé, coragem na população. Havia também um líder que conduziu esse objetivo até o martírio da sua própria vida.

A Petrobrás foi a principal base para nossa industrialização pesada de navios, sondas, plataformas, refinarias. Foi a base do mais ambicioso projeto de combustíveis renováveis do planeta. Nosso povo, através da Petrobrás, achou e conseguiu explorar um mar de petróleo barato em uma profundidade que muitos achavam impossível alcançar. O pré-sal é provavelmente a maior reserva de petróleo do mundo. E isso explica muita coisa... Está em prática pela atual direção da Petrobrás um plano de privatização fatiada da empresa que visa a ir muito além de doar essa gigantesca reserva a estrangeiros a preço de fim de feira. O plano vai além de doar o pré-sal às nações "amigas", como fez o Rei de Portugal quando aqui aportou fugido de Napoleão e sob a proteção da Inglaterra. Querem destruir a Petrobrás, como já destruíram a Eletrobrás, através da desintegração da empresa.

A Petrobrás é uma potência, porque é uma empresa integrada de petróleo. Sua rede de poços, oleodutos, gasodutos, usinas elétricas, tanques, fábricas, postos, refinarias, portos, frotas de navios, trens e caminhões é interligada em todo território nacional. Ela funciona como um sistema circulatório que leva energia para toda economia nacional e para todas as famílias. E, como se diz tecnicamente, é uma empresa integrada do poço ao posto. Esse papel social e econômico da Petrobrás como empresa de infraestrutura integrada tem um valor para o povo brasileiro muito maior do que as maiores reservas de petróleo do mundo. Sem essa infraestrutura, nosso PIB, a economia brasileira não sobreviveria, nossas empresas não teriam competitividade, o povo não teria empregos e o governo não teria arrecadação para manter os serviços públicos essenciais para nossa sobrevivência e qualidade de vida.
É essa infraestrutura integrada que agora os traidores querem desmontar, vender e sucatear. O objetivo disso vai muito além de dar aos vencedores o butim, o espólio, dessa guerra política semi-subterrânea que estamos vivenciando.

O objetivo é quebrar as pernas e colocar de joelhos o Brasil, o B dos Brics que tanto assustam os senhores do mundo. O objetivo é destruir a auto-imagem do nosso povo para que nunca mais tenhamos a ousadia de desobedecer e desafiar tecnologicamente, economicamente ou diplomaticamente, em nenhum campo, certas potências que manipulam aqui dentro, como se fôssem marionetes, a mídia e diversas correntes políticas. Desmontada a Petrobrás, demoraríamos décadas para voltarmos a ter a empresa poderosa que temos hoje e que causa admiração, respeito e temor em todo mundo. Demoraríamos muito tempo só para voltar a ter autoestima suficiente para enfrentar novamente esse desafio.

Desde a sua criação, a história da Petrobrás foi marcada por duras provações, mas também por perseverança e sucesso. Ao iniciar suas atividades, a empresa dependia, quase que exclusivamente, da importação de materiais, equipamentos, serviços e recursos humanos especializados. Essas dificuldades estimularam o exercício de nossa determinação. A Petrobrás acabou sendo o polo indutor da formação de mão de obra qualificada e de desenvolvimento de produtos e serviços no território nacional, tornando-se, dessa maneira, o grande epicentro de progresso tecnológico e produtivo no Brasil. A indústria petrolífera brasileira acabou sendo a impulsonadora de um projeto de desenvolvimento nacional que tinha como elemento central as políticas setoriais de substituição de importações e o enfrentamento à industrialização tardia do País.

Até o governo FHC, a Petrobrás manteve-se como executora do monopólio estatal do petróleo. Porém, o fim do monopólio da Petrobrás não representou o fim a importância da empresa. O estabelecimento da concorrência a partir do regime de concessão não inibiu as atividades da integrada e competente estatal, construída ao longo do período do monopólio. A gestão competente da sua infraestrutura integrada manteve a Petrobrás como uma das mais lucrativas petrolíferas do mundo e uma concorrente imbatível no mercado brasileiro. A excelente infraestrutura de processamento e distribuição de petróleo centralizadas no Rio e em São Paulo serviram de retaguarda financeira e, principalmente, operacional para a descoberta e a incrivelmente rápida colocação do pré-sal como maior ameaça e oportunidade para toda indústria petrolífera mundial. Graças a essa infraestrutura fabulosa, a Petrobrás transformou o pré-sal de descoberta teórica a produção efetiva em uma velocidade que muitos diziam ser impossível. E, contra todos os prognósticos, fizemos isso com equipamentos e tecnologias construídas no Brasil.
Essa realização foi uma ofensa considerada imperdoável para aqueles querem ver nossa Nação de joelhos. Um plano foi tramado para tirar das mãos dos brasileiros o controle e os frutos dessa imensa riqueza.

Assim como 1953, o ano de 2016 pode ser considerado um novo marco histórico. Em setembro deste ano, foi apresentado pelo governo Temer o Plano de Negócios e Gestão – PNG 2017-2021. O primeiro plano sob a presidência do Sr. Pedro Parente. Esse "plano" é a justificativa teórica do maior assalto já tramado contra nossa Petrobrás. É nossa obrigação estudá-lo e desmascará-lo. O Plano se baseia em três falsas premissas:

1) Se a relação dívida/geração de caixa (EBITDA) não mudar de 5,3 para 2,5 rapidamente, um "desastre" poderia acontecer
2) Essa relação dívida/geração de caixa não poderia se reduzir com os resultados da própria empresa e em um horizonte mais longo
3) O governo brasileiro não poderia fazer como o governo de outros grandes exportadores de petróleo, como Noruega, e assumir parte dos investimentos da empresa, deixando que a relação de endividamento da empresa melhore imediatamente.

As premissas são falsas porque o endividamento da Petrobrás está em um nível saudável, não sendo preciso à empresa vender seus bens mais precisos, para pagar a dívida.
São falsas porque os resultados operacionais da empresa já são robustos o suficiente para melhorar essa relação naturalmente sem vender nada precioso. São falsas também porque a Petrobrás não se endividou porque teve dificuldades financeiras, mas porque assumiu um plano de investimento muito grande e que em outros países seria assumido ao menos parcialmente pelo Estado Nacional, porque é o Estado Nacional o maior beneficiário e o mandatário real deste plano de investimento ambicioso. Não deve a responsabilidade, portanto, recair integralmente numa empresa regulada pelo direito privado e que tem que cumprir regras financeiras privadas e atender ansiedades típicas e investidores privados de curto prazo.

O grande crime que este plano – PNG 2017-2021 – comete contra a verdade, contra a boa fé das pessoas é dizer que a tal meta de redução do endividamento é sagrada, incontestável e só pode ser realizada de uma única forma: a forma que interessa àqueles que querem desintegrar a Petrobrás e privatizar ativos únicos e valiosíssimos a preço de banana. Aliás, essa mesma premissa falsa de que existe uma meta de endividamento sagrada e uma única solução sagrada para atingi-la também está sendo usada para justificar a PEC 241 que o governo Temer quer impor ao Congresso para congelar os gastos públicos e sociais por 20 anos.

O Plano do Sr. Parente e do Sr. Temer para a Petrobrás se baseia fundamentalmente na falsa necessidade de pagar R$ 238 bilhões em amortizações nos próximos anos. Ora, quem conhece o capitalismo sabe que a dívida de uma grande empresa existe para ser rolada e renovada indefinidamente, ao menos até que a geração de caixa seja tão robusta e as oportunidades de investimento tão pobres que não haja nada melhor a fazer com o dinheiro do que pagar amortizações.
Sabemos que esse não é o caso da Petrobrás. Seus ativos geram uma rentabilidade muitas vezes maior do que os 8% em média que ela paga em sua dívida. O pior investimento no mundo hoje é pagar dívida internacional em dólares no momento em que as taxas de juros em dólares são as menores da história e muito menores do que a inflação. Mas não para o plano "genial" dos Srs Parente e Temer.

Elementar meu caro Watson, alguma justificativa precisa ser encontrada para entregar as maiores joias da Coroa da Petrobrás: a infraestrutura, os gasodutos, a BR Distribuidora, e o pré-sal no momento em que o petróleo está artificialmente no valor mais baixo em muitos anos, em razão de uma disputa geopolítica contra Rússia, Irã, Venezuela e, por que não, Brasil. Para isso, inventaram que é sagrado amortizar 238 bilhões de reais em dívida no momento em que elas estão com o custo mais baixo em toda história, desde os anos 30, e os credores internacionais imploram para que alguém pague uma taxa de juros que não seja negativa.

A privatização da BR Distribuidora e da Nova Transportadora do Sudeste – NTS, além da venda de Carcará, significa abrir mão de ativos rentáveis e estratégicos para a Petrobrás e para o País.
Não há necessidade de se vender esses e outros ativos. Em vez de se gerar meros de US$ 19 bilhões com a venda desses tesouros estratégicos, seria muito melhor rolar o mesmo valor em dívidas enquanto os imensos investimentos no Pré-Sal e nas refinarias feitos nos governos anteriores continuem a maturar de forma rentável como já tem acontecido. Basta que alguém veja no Balanço da empresa. É público! Os 8% de juros que paga essa dívida é muito menor que a rentabilidade de ativos estratégicos como a BR Distribuidora e a NTS. Ativos esses que tem um valor muito maior do que sua já alta rentabilidade de curto prazo.

Não se tem notícia da venda de gasodutos e da perda do controle acionário de empresas distribuidoras de grandes grupos como a Shell, Total, BP e ExxonMobil. As distribuidoras são fundamentais para as petrolíferas mundiais tanto do ponto de vista financeiro quanto estratégico. É a partir das distribuidoras que as empresas mostram sua marca para o público. A desintegração pode ser o fim da empresa estatal que foi o principal projeto nacional e que custou a vida do então Presidente Getúlio Vargas. A existência da Petrobrás deve ter como base o interesse público, não interesses escusos. Se erros foram cometidos, eles devem ser corrigidos. Erros passados não devem servir de pretexto para a desintegração e a verdadeira destruição da Petrobras.

ROBERTO REQUIAO Via Cristiano Eduardo Moro Réboli

terça-feira, 4 de outubro de 2016


"Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais.
O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da cor da pele, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente.
Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo."


(Fernando Evangelista)


sábado, 1 de outubro de 2016

CARTA DE MARCOS TUPÃ A PROPÓSITO DA PEC 215





Nesta semana, a obra do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret recebeu tintas vermelhas, em um protesto realizado por índios do estado contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que retira do governo federal a autonomia da demarcação de terras, transferindo para o Congresso Nacional. O monumento, inaugurado em 1953, presta uma homenagem aos bandeirantes, responsáveis pelo assassinato de índios, nos séculos 17 e 18. Leia abaixo a carta de Marcos Tupã:

Saindo da Av. Paulista, marchamos em direção a essa estátua de pedra, chamada de Monumento às Bandeiras, que homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Lá subimos com nossas faixas, e hasteamos um pano vermelho que representa o sangue dos nossos antepassados, que foi derramado pelos bandeirantes, dos quais os brancos parecem ter tanto orgulho. Alguns apoiadores não-indígenas entenderam a força do nosso ato simbólico, e pintaram com tinta vermelha o monumento. Apesar da crítica de alguns, as imagens publicadas nos jornais falam por si só: com esse gesto, eles nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência. Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio público, pois deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das elites para dar voz a nós indígenas, que somos a parcela originária da sociedade brasileira. Foi com a mesma intensão simbólica que travamos na semana passada a Rodovia dos Bandeirantes, que além de ter impactado nossa Terra Indígena no Jaraguá, ainda leva o nome dos assassinos.

A tinta vermelha que para alguns de vocês é depredação já foi limpa e o monumento já voltou a pintar como heróis, os genocidas do nosso povo. Infelizmente, porém, sabemos que os massacres que ocorreram no passado contra nosso povo e que continuam a ocorrer no presente não terminaram com esse ato simbólico e não irão cessar tão logo. Nossos parentes continuam esquecidos na beira das estradas no Rio Grande do Sul. No Mato Grosso do Sul e no Oeste do Paraná continuam sendo cotidianamente ameaçados e assassinados a mando de políticos ruralistas que, com a conivência silenciosa do Estado, roubam as terras e a dignidade dos que sobreviveram aos ataques dos bandeirantes. Também em São Paulo esse massacre continua, e perto de vocês, vivemos confinados em terras minúsculas, sem condições mínimas de sobrevivência. Isso sim é vandalismo.

Ficamos muito tristes com a reação de alguns que acham que a homenagem a esses genocidas é uma obra de arte, e que vale mais que as nossas vidas. Como pode essa estátua ser considerada patrimônio de todos, se homenageia o genocídio daqueles que fazem parte da sociedade brasileira e de sua vida pública? Que tipo de sociedade realiza tributos a genocidas diante de seus sobreviventes? Apenas aquelas que continuam a praticá-lo no presente. Esse monumento para nós representa a morte. E para nós, arte é a outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade e foi isso que se realizou nessa intervenção.

A POLÍCIA MATA, MAS É O JUIZ QUEM ENTERRA

Sábado, 1 de outubro de 2016
A frase que dá título a este artigo é do delegado Orlando Zaccone e serve como uma conclusão informal de sua tese de doutorado, que culminou no livro Indignos de Vida (Ed. Revan, 2015), que analisa a ausência de culpabilização nos homicídios policiais no Rio de Janeiro.
A tese contempla uma importante pesquisa empírica, o estudo de mais de trezentas promoções de arquivamento em homicídios atribuídos a policiais na cidade do Rio de Janeiro. Do trabalho se extraem inúmeras manifestações modelo, que se repetem à exaustão; ausências reiteradas de análise fática nos inquéritos e presunção quase absoluta da legítima defesa. Sempre que a vítima está no rol dos matáveis (os de vida nua, segundo a doutrina de Agambem, que ilumina o estado de exceção): “marginais”, habitantes de favelas, pontos de negócios com drogas, portadores de maus antecedentes criminais, traficantes etc.
Se já era por si só recomendável, pelo enorme esforço de pesquisa e a pertinência do instrumental teórico, a leitura de Zaccone se tornou essencial para os dias correntes, que nos envolvem em discursos justificadores do estado de exceção e do tratamento como vítimas a acusados de mais de uma centena de mortes.
Indignos de vida, é bom que se diga, havia antevisto essa inversão. Nas manifestações de arquivamento analisadas, policiais indiciados são tratados, sobretudo, como testemunhas. Interrogatórios vem traduzidos como relatos harmônicos e coerentes; são os mortos, enfim, que são reiteradamente julgados nestes autos.
Ao final, inquéritos e mais inquéritos arquivados no que o autor denomina de máquina burocrática do descaso e do esquecimento.
A lei tira férias quando a questão é o confronto com o inimigo, tornando praticamente desnecessária qualquer outra consideração:
Aqueles que jamais subiram morros, favelas ou sequer conhecem de perto os antros frequentados por marginais, e que se enclausuram em seus gabinetes sem que nunca tenham participado de tiroteio, seja no estrito cumprimento do dever legal ou também em legítima defesa, não devem se apegar com antolhos ao texto gélido da lei, distante do calor dos acontecimentos e a salvo de gravíssimos riscos, na busca do enfraquecimento ou do desestímulo das atividades de Polícia Judiciária”.
A denúncia da exceção coube a um voto solitário na análise de procedimento administrativo contra o juiz Sérgio Moro.
Para o desembargador Rogério Favretto, do TRF, 4ª Região: “o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais. Sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária”. No mesmo contexto, o desembargador reproduz o alerta de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto proferido originalmente em relação a um voto do ministro Eros Grau: “Não nos parece apropriado (…) atribuir ao STF o “poder soberano”, no sentido de Carl Schmitt, de suspender a força de normas jurídicas para instaurar a exceção”.
A coincidência de que Agamben tenha sido lembrado de um lado e de outro não é fortuita. O estado de exceção não está aí à toa. Tem uma importante função a servir:
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só de adversários políticos, mas também categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”.
É certo, como lembra Zaccone, que “a violência policial é uma política de Estado no Brasil, que recebe o apoio e o incentivo de parcela da sociedade”, mas nem isso deve reduzir a responsabilidade dos atores jurídicos.
Estamos habituados a ouvir que a sociedade aplaude o “bandido bom, bandido morto” e soluções violentas na atuação policial são louvadas diariamente em programas vespertinos de grande audiência.
Mas o jogo muitas vezes se inverte quando as imagens nuas e cruas (aqui me vem à mente o rio de sangue nas galerias da Detenção e o amontoado de corpos nus) são disponibilizadas a todos. Como a reação que se estabeleceu logo em sequência aos abusos da Favela Naval, exibidos em rede nacional, que culminaram na criminalização da tortura.
No caso do Carandiru, fica o registro: todos os julgamentos populares terminaram em condenação. Absolvições só começam a aparecer nos recursos ao tribunal. 
Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

APERTEM OS CINTOS: ESTAMOS ENTRANDO NA ERA DA PÓS-VERDADE


Por Carlos Castilho em 28/09/2016 na edição 921 
Republicado do site objETHOS, 26/09/2016 
Pós verdade parece mais uma expressão de impacto para chamar a atenção de um público saturado de informações e inclinado para a alienação noticiosa. Mas o fato é que estamos diante de um fenômeno que já começou a mudar nossos comportamentos e valores em relação aos conceitos tradicionais de verdade, mentira, honestidade e desonestidade , credibilidade e dúvida.
As evidências desta nova era estão nas manchetes de jornais, em declarações como as do candidato republicano Donald Trump ou nas dos procuradores e acusados na Lava Jato. Se antes havia verdade e mentira, agora temos verdade, meias verdades, mentira e afirmações que podem ser verdadeiras, conforme afirma o escritor norte-americano Ralph Keyes, o autor do livro The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life (St. Martin’s Press, 2004. ISBN 978-0-312-30648-9).
Quando Trump afirmou num discurso que o presidente Barack Obama foi um dos fundadores do Estado Islâmico, até os ultraconservadores norte-americanos acharam que ela estava exagerando. Mas o candidato republicano não se abalou, nem mesmo na televisão, quando explicou que Obama permitiu o surgimento do grupo radical islâmico porque este cresceu no vácuo politico deixado no Iraque pelo que Trump classificou de fracassos da diplomacia do presidente norte-americano. A polêmica criada em torno da afirmação gerou a percepção de que ela poderia ser verdadeira. Foi o suficiente para que Trump saísse ileso da discussão.
Os conservadores transformaram a insegurança pública num dos seus carros chefes na campanha pela implantação da doutrina do medo social, como forma de domesticar a população. Mas eles negam a evidência estatística de que na maioria dos grandes centros urbanos do planeta a incidência de crimes diminuiu em relação ao número de habitantes. A explicação para a discrepância entre a sensação de insegurança e as estatísticas criminais é complexa e exige uma boa dose de esforço e isenção. É mais fácil partir para aquilo que uma parte do publico quer ouvir.
A “cognição preguiçosa”
É um caso típico de aplicação da teoria da “cognição preguiçosa”, criada pelo psicólogo e prêmio Nobel Daniel Kahneman, para quem as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional.
Aqui no Brasil, a pós verdade é nítida no caso das investigações da Lava Jato. Separar o joio do trigo no emaranhado de versões e contra versões produzidas pelas delações premiadas é bem complicado. Há poucas dúvidas sobre a existência de esquemas de propinas, caixa dois eleitoral, superfaturamento, formação de cartéis e enriquecimento de suspeitos, mas provar cada um deles com base em evidências é uma operação complexa e demorada. Em alguns casos até inviável dada a sofisticação dos esquemas adotados pelos suspeitos de corrupção.
Mas como existe o interesse político envolvendo a questão e como existe a “cognição preguiçosa”, as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e provas. A dicotomia jurídica clássica entre o legal e o ilegal passa a ser substituída por justificativas tipo “domínio do fato”, ou seja, convicções construídas a partir da repetição massiva de percepções individuais ou corporativas, pelos meios de comunicação.
Segundo a revista The Economist, o mundo contemporâneo está substituindo os fatos por indícios, percepções por convicções, distorções  por vieses. Estamos saindo da dicotomia tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira para ingressarmos numa era de avaliações fluidas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências. A verossimilhança ganhou mais peso que a comprovação.
A pós verdade, um termo já incorporado ao vocabulário da mídia mundial, é parte de um processo inédito provocado essencialmente pela avalancha de informações gerada pelas  novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Com tanta informação ao nosso redor é inevitável que surjam dezenas e até centenas de versões sobre um mesmo fato. A consequência também inevitável foi a relativização dos conceitos e sentenças.
Mas o que parecia ser um fenômeno positivo, ao eliminar os absurdos da dicotomia clássica num mundo cada vez mais complexo e diverso, acabou gerando uma face obscura na mesma moeda. Os especialistas em informação enviesada ou distorcida (spin doctors no jargão norte-americano), aproveitaram-se das incertezas e inseguranças provocadas pela quebra dos paradigmas dicotômicos para criar a pós verdade, ou seja, uma pseudo-verdade apoiada em indícios e convicções já que os fatos tornaram-se demasiado complexos.
A herança de Goebbels
Diante das dificuldades crescentes para materializar a verdade por conta da avalanche informativa, especialmente na politica e na econômica, criaram-se as pós verdades, ou factoides (no jargão brasileiro), onde a repetição e a insistência passam a ocupar o espaço das evidências.
Na era da pós verdade, as versões ganharam mais importância do que os fatos, o que não é bom e nem mau. É simplesmente uma realidade. O que chamamos de fatos, na verdade são representações de um fato, dado ou evento desenvolvidas pela mente de cada indivíduo.
Assim, teoricamente, podemos ter um número de representações de um mesmo fato igual ao número de seres humanos no planeta Terra. E como as TICs permitem a disseminação massiva destas representações ou percepções, fica fácil intuir a complexidade da avaliação de fatos, dados ou eventos.  “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”,  a controvertida máxima cunhada pelo chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, tornou-se preocupantemente atual.
Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, ganharam um papel protagônico no fenômeno da pós-verdade porque a circulação de mensagens passou a ser o principal mecanismo de produção de novos conhecimentos numa economia digital movida a inovação permanente. A relevância conquistada pelos meios de comunicação os transformou em agentes fundamentais no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade. Quando a imprensa norte-americana endossou a tese da existência de armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein, ela  deixou de lado a verificação dos fatos e foi decisiva na transformação de uma possibilidade em certeza acima de suspeitas.
Teoricamente a pós verdade pode ser usada tanto pela esquerda como pela direita no terreno politico, mas como a imprensa joga um papel fundamental no processo, os rumos obviamente serão determinados pela ação de jornais, revistas, meios audiovisuais e pelas redes sociais. A imprensa portanto, não é uma observadora mas uma protagonista do processo de transformação de mentiras ou meias verdades em fatos socialmente aceitos.
A pós verdade e o jornalismo
A pós verdade é apenas um dos itens da era digital que estão abalando nossas crenças e valores. Nós jornalistas e toda a sociedade estamos vivendo um momento de insegurança e incertezas porque estamos passando de um contexto social para outro.  Esta insegurança não é um fenômeno inédito na humanidade porque já aconteceu antes quando grandes inovações tecnológicas alteraram radicalmente o contexto social da época. Basta ver o que ocorreu após a invenção da pólvora, dos tipos móveis por Gutemberg, da máquina a vapor e dos processos de produção industrial.
Um dos grandes, talvez o maior de todos, dilemas enfrentados pela sociedade atual, é a necessidade de conviver com a complexidade do mundo contemporâneo. Tomemos o caso da polêmica científica sobre o meio ambiente. É um tema complexo onde o bombardeio informativo confunde as pessoas comuns com afirmações contraditórias entre cientistas e pesquisadores. Do ponto de vista dos cientistas é natural que existam posicionamentos distintos mas para o público, acostumado pela imprensa a esperar verdades absolutas, as contradições e divergências geram incertezas, que acabam conduzindo ao descrédito generalizado.
A pós verdade coloca para nós jornalistas o desafio da repensar a credibilidade e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet.
A pós verdade é talvez o maior desafio para o jornalismo contemporâneo porque ela afeta a relação de credibilidade entre nós e o público. A nossa atividade está baseada na confiança das pessoas de que o que publicamos é verdadeiro. Quando uma nova conjuntura informativa interfere nesta confiabilidade, temos serias razões para nos preocupar, e muito, sobre o futuro da profissão.

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