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sábado, 20 de outubro de 2012

A VISITA DE EINSTEIN AO BRASIL


Einstein no Rio de Janeiro

Para usar de uma linguagem mais própria, devemos dizer: como a luz de uma estrela que vem do passado, assim nos atinge a visita de Einstein ao Rio de Janeiro. 
Por Urariano Mota.

E com mais propriedade, acrescentar: se os 80 anos-luz que nos separam da estrela Algol fazem dela um lugar muito estranho e diferente da nossa Terra, o mesmo não podemos dizer dos 87 anos que nos separam da boa sociedade do nosso Brasil, quando Einstein nos visitou. Os tipos e personagens brasileiros continuam vivos, com uma sobrevivência além da lógica, arqueológica, deveríamos dizer.

Relatam os cronistas que corria o ano de 1925. No princípio, Einstein não viria ao Brasil. Dizem que ele nem mesmo sabia que lugar seria este. “É um país tropical”, disseram-lhe. E como o sábio não relacionasse tropical a qualquer coisa conhecida, informaram-no de que era um lugar de selvas, de bananeiras, de clima quente, de macacos e papagaios. Então Einstein se moveu, e, aproveitando sua viagem à Argentina, alcançou o Brasil, porque seria, disseram-lhe, como dobrar uma esquina. “De Buenos Aires ao Rio de Janeiro é como ir de Berlim a Roma”. Entendo, respondeu-lhes Einstein, e mesmo sem entender fez essas duas viagens.

Os cronistas nada informam acerca de Einstein haver sido uma das primeiras vítimas dos pacotes turísticos. Alguns, e aqui se irmanam argentinos e brasileiros, afirmam que um turista como ele era um tipo bem difícil de se enquadrar em um pacote. Como levar um homem despenteado a um espetáculo de tango? perguntavam os argentinos. E por essa impossibilidade queriam dizer que o físico não se harmonizava, primeiro, com os cabelos gomados, e depois que o físico não possuía físico para as evoluções de um tango. Em nível menos óbvio, e esta era a verdadeira razão, o que não diziam é que um tipo como Einstein não era um ser que gostasse do que todo homem gosta: de vinho e de carnes nobres, da mesa à cama. Daí a confusão, o caos, uma verdadeira indeterminação de Heisenberg em suas mentes para regalar o cientista com um programa digno da sua dimensão. Daí que, não lhe podendo fazer um roteiro de humanos, fizeram-lhe um roteiro… científico. Palestras, conferências e perguntas tontas. Anotaria Einstein, ao deixar Buenos Aires, que era impossível ficar sério diante dos questionamentos que lhe eram feitos em suas conferências. Ele mal imaginava as emoções que o aguardavam a seguir. “Que venha o Brasil”, o cientista se disse.

Na sua chegada ao porto do Rio de Janeiro só não lhe tocaram Cidade Maravilhosa porque a banda no cais não poderia tocar o que ainda não havia nascido. Mas as fotos mostram o cientista em um mar de curiosos, que lhe acenavam e sorriam como se ele fosse um astro de cinema. Se tivesse tempo para refletir, certamente diria o que certa vez se disse Borges, ao ser cumprimentado por muitas pessoas nas ruas de Buenos Aires: “eles acenam para um homem que pensam que sou eu”. Mas não havia tempo. Dali, sempre cercado por uma comitiva dos mais doutos cientistas, rumou para o Hotel Glória, onde pousou as surradas malas. Não havia tempo. Havia que visitar a comunidade israelita, ver a cidade, conhecer instituições respeitáveis, visitar o Presidente da República, e dizer a que veio: três conferências, a primeira no Clube de Engenharia, a segunda na Escola Politécnica e a última na Academia Brasileira de Ciências. Com direito a almoços e jantares nos intervalos, em locais diferentes, sempre cercado da mais douta gente, e o mais que aparecesse, e tudo no prazo de uma semana. Não havia tempo. Os organizadores da sua agenda conseguiram o que parecia impossível em 1925: transformar a bela cidade do Rio de Janeiro em uma anticidade.

E cabe aqui, de passagem, uma visão dos responsáveis por seus dias no Brasil, os chamados doutores que o cercavam. Não havia, entre eles, um só físico ou um só matemático. Os doutores eram médicos, advogados, políticos, militares, embaixadores, e alguns engenheiros. Todos muito bem situados, ricos, ou a caminho de enriquecer, ou com prestígio no Rio de Janeiro. Eram os doutores clássicos do Brasil: os donos de uma posição social, e que por isso mereciam e merecem o tratamento honroso. Com tal gente, o resultado foi o que se viu.

Na primeira palestra, no Clube de Engenharia, o salão ficou completa e absolutamente lotado. Políticos, graduados oficiais das três forças armadas, altos funcionários, engenheiros, esposas e filhos e filhinhos, todos muito unidos na mais absoluta ignorância do que vinha a ser aquele indivíduo estranho e suas ainda mais estranhas ideias. Com a vantagem, que os deixava ainda mais unidos, de não entenderem uma só palavra da língua alemã. Ou até mesmo de outra língua, diga-se, que não fosse o português falado na intimidade de suas casas. O que importava era ver o homem famoso em ação. E Ele era lento, logo se viu, porque em lugar de subir à mesa e de imediato soltar um cocoricó, bater asas e se jogar pela janela, pôs-se a pervagar com os olhos a assistência, “com os seus olhos muito loucos”, como diriam depois. O que diabo eu vim fazer no Rio de Janeiro, perguntava-se o bruxo, enquanto esperavam que nos seus olhos entrasse alguma realidade sã. Como fazer, o que fazer, e como fazer diante daquela assistência, perguntava-se. Então o nobre e paciente cientista fez ver à mesa, em humilde francês, que não poderia falar em alemão, porque essa língua muito iria dificultar o entendimento de sua fala. Que fale em qualquer língua, pouco importa, ninguém irá mesmo entendê-lo, vontade teve de lhe responder o anfitrião. Mas preferiu dizer-lhe palavras mais gentis, em francês, porque era um diplomata de carreira:

– O senhor pode falar com a linguagem universal: fale pela língua da matemática.

O cientista sorriu, porque sabia que para a matemática ainda não se inventaram os verbos necessários até na Teoria da Relatividade. E passou a expor, em lento e paciente francês, como uma pessoa envelheceria menos depressa em velocidades próximas a 300.000 quilômetros por segundo. Ao que comentou, quando lhe traduziram, a velha senhora mãe do diplomata: “na teoria tudo é muito fácil”. O certo é que o cientista conseguiu chegar ao fim, em meio ao calor, entre o suor, o barulho e o choro de crianças, que mais sinceras se manifestavam com gritos e esperneios. Ao terminar, o que todos de imediato compreenderam, porque o cientista ficou de repente mudo e se deixou ficar imóvel a um canto e sentado, toda a assistência se levantou e prorrompeu em aplausos. Menos entusiasmado, Einstein anotou em seu diário, mais tarde: “Às 4 horas, primeira conferência no Clube de Engenharia numa sala superlotada, com ruído da rua, as janelas abertas. Não tinha nenhuma acústica para que me entendessem. Pouco científico”.

No dia seguinte, para ser mais científico, foi à Academia Brasileira de Ciências. Ali foi homenageado em uma sessão que se anunciou como a maior já feita para o maior cientista de todos os tempos. Se alguma dúvida ele possuía que estivesse no Brasil, ali os acadêmicos trataram de tirá-la, porque o fizeram ouvir três longos, vazios e verbosos discursos. Ouviu de certa forma, devemos retificar, porque os discursos vinham em um francês que todos, acadêmicos e cientistas, mal falavam. Falaram, falaram e falaram, pela ordem: Juliano Moreira, Vice-Presidente, sobre a influência da Teoria da Relatividade na Biologia, o que é lamentável, não a sua fala, mas a falta de um registro preciso desse discurso, pois teríamos um documento importante do nível mental dos nossos acadêmicos; depois foi a vez de Francisco Lafayette, que foi do movimento browniano, coisa que devia bem conhecer, até a síntese desse movimento na Teoria da Relatividade! As atas não registram, mas podemos imaginar o sorriso, de dor, de Einstein por essa extensão e deferência (dizem que mais dói um elogio que não merecemos); e por fim, usou da palavra o acadêmico Mário Ramos, que entre circunlóquios e peroração instituiu o prêmio Albert Einstein a ser entregue anualmente ao melhor trabalho científico. Então chegou a vez do homenageado, a estrela maior que viera dos espaços de outra galáxia. Pelo andar da carruagem, todos esperavam que o homenageado fizesse um discurso mais alto e vibrante que os precedentes, porque tais sessões sempre atingem um ápice, um paroxismo, e porque também haviam sido formados, os acadêmicos, pela ciência do latino, a grande e inexcedível eloquência de Cícero. Que por ser um sábio Einstein babasse, cantasse uma ópera, ou mesmo caísse em um ataque fulminante, seria normal, pois que era um gênio. O cientista, no entanto, mais uma vez decepcionou. Em mau francês passou a falar baixinho, à guisa de agradecimento, sobre a situação da natureza da luz em 1925. Os acadêmicos se entreolhavam, frustrados, mas sorriam a seus pares, todos muito sábios e senhores das equações de Max Planck. Mais uma vez, a platéia composta de políticos, jornalistas e doutores aplaudiu.

Eis que chega então o melhor dia. Na terceira e última palestra, na Escola Politécnica, não houve a invasão do grande público, das senhoras mães com seus filhinhos, dos oficiais com galões e de velhos generais nascidos no século dezenove. A julgar pelos jornais, “o Professor Einstein pôde desenvolver a sua palestra sob um ambiente tranquilo, e dessa maneira os cientistas brasileiros acompanharam-no passo a passo na sua exposição”. Nem tanto, e por favor acreditem, porque nada é mais rico que a própria realidade. Um desses grandes nomes da ciência, um desses físicos era o jurista Pontes de Miranda. Sim, um jurista. Pontes de Miranda vinha a ser o autor de uma extensa obra que procurava construir a ciência do direito conforme as idéias positivistas. O nome da obra era digno de figurar em letras de ouro, nas bibliotecas dos doutos cientistas da advocacia: Systema de Sciencia Positiva do Direito. Pois é esse homem que a falar em alemão desafia Einstein, para maior fascínio dos cientistas presentes:

– Data venia, Herr Einstein, a Teoria da Relatividade não considerou as implicações metafísicas das hipóteses que aventa. Das ciências físicas até as ciências jurídicas a diferença, saiba, é de grau. A Física mantém um pacto com o mundo da sociedade também, e é pacto que tira e põe, mas não deixa intacto o que estava. A questão é tanto mais delicada quanto a afirmação de não se poder alegar o erro e a de se exigir a capacidade objetiva e o além da capacidade objetiva, que leva a argumentos a favor de uma e de outra opinião. Falta na Teoria da Relatividade o conhecimento, a informação de que não é só o mundo em si, an sich, de que ela trata. Há de se ver que nas suas consequências falta o desdobramento de um mundo para nós, für uns…

A platéia delirava diante de tal brilho. O cientista sorria e mantinha silêncio. Quando acabou o discurso do jurista, no que parecia ser a contestação à Teoria da Relatividade naquele tribunal, o físico se levantou, e como a se despedir, entregou a um dos acadêmicos um papel onde se lia:

“Die Frage, die meinen Kopf entsprang, hat Brasilien sonniger Himmel beantwortet” (“A questão, que minha mente formulou, foi respondida pelo radiante céu do Brasil.”)

Era uma referência ao eclipse do Sol, observado em Sobral, no nordeste brasileiro, que em 1919 comprovara a previsão do cientista quanto à deflexão da luz pelo campo gravitacional do Sol. Mas assim não entendeu bem o ilustre jurista, que ao ler aquelas palavras interpretou-as como uma resposta à sua intervenção. Pois não era dia de sol e azul o céu do Rio de Janeiro na hora da palestra?

Da sua viagem ao Brasil, sabe-se, por fim, que Einstein levou um papagaio, recebido de presente de um homem do povo. Foi o maior presente recebido em toda sua vida de um país tropical. Todos os dias o papagaio lhe fazia lembrar, com graça e inteligência, o saber daqueles doutores de posição social. Data venia, Herr Einstein, data venia, Herr Einstein, repetia-lhe o papagaio. Os amigos contavam que tais arremedos traziam sempre um pouco de luz às manhãs frias e escuras do Doktor Einstein.

Recebido por e-mail do Egberto

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