Vera Chvatal
O que tem de comum entre Dom Quixote de La Mancha e os
brasileiros? Dom Quixote, o “cavaleiro da triste figura” foi - na imortal obra de Cervantes - um
romântico e sonhador fidalgo que acreditava ter que sair pelo mundo acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança e do esquálido cavalo Rocinante,
lutando contra monstros imaginários, invisíveis e salvando donzelas desamparadas,
em perigo.
Nós brasileiros temos um pouco desse personagem fictício. Os
monstros com os quais temos que lutar são, de certa forma, também invisíveis,
mas não imaginários. Enquanto os monstros de Dom Quixote eram moinhos
que, com suas pás girando ao vento, transformavam-se em criaturas maléficas e
perigosas na torturada imaginação do fidalgo, os nossos monstros com seus pomposos nomes de “corrupção”,
“impunidade” e “omissão” também possuem tentáculos invisíveis e perigosíssimos
que atacam o desenvolvimento saudável do país e impedem o bem-estar de sua
população.
Um crítico da obra de Cervantes disse que ela foi
estruturada em duas partes, deixando na primeira parte a sensaçåo de liberdade
máxima, enquanto que na segunda parte a sensação é de asfixia e de encerramento
em estreitos limites. Na primeira parte reina a ironia, como uma amarga expressão da
impossibilidade de dar realidade a um ideal. E na segunda parte, o que se
percebe é muito mais a confrontação do reino da imaginação com o mundo da
realidade.
Segundo Cervantes, sua obra representa “a ordem
desdordenada”, permitindo-lhe dar relevo aos contrastes através da deslocação
do patético para o burlesco. Dessa forma o conflito nasce do confronto entre o
passado e o presente, o ideal e o real, e o ideal e o social...
Pois não é esse o atual retrato da realidade política do
nosso país? Todos os dias lendo os jornais, acessando a internet ou assistindo
à TV o que vemos é uma sucessão burlesca de corrupção e corrúptos
degladiando-se para escapar impunes de suas responsabilidades, omitindo-se em
enfrentar a realidade do que seus atos obscuros, egoístas e ganaciosos provocam
no pais e na população que os elegeu para representá-los.
Campinas é um retrato vivo disso! O que se vê são impostos
altíssimos sendo cobrados da população em contrapartida às ruas esburacadas com asfalto
mal-feito, calçadas inexistentes e perigosas para se caminhar,
praças abandonadas e cobertas de mato, níveis de violência altíssimos,
segurança zero, cultura inexistente... e por aí vai!
No passado já fomos uma cidade considerada aprazível para se
viver, com boa qualidade de vida... atualmente registramos um dos mais altos
índices de roubos e violência urbana. Já fomos uma cidade onde o ideal era a
preservação do verde, onde a água que bebíamos era das melhores do país... hoje
o próprio orgão responsável pelo cuidado com a água se vê enlameado pela
corrupção daqueles que o administram! Campinas já teve uma rica vida cultural.
Ostentou um dos mais belos teatros, o Teatro Municipal Carlos Gomes onde o
próprio homenageado se apresentou e que acabou sendo demolido – estúpidamente –
pelos mandatários da ocasião. E o que temos agora? Cinemas que viraram teatros
e que acabaram fechados ou em ruínas pelo abandono do poder público. E os que
ainda funcionam deixam muito a desejar em matéria de conforto e utilização
cultural.
O descaso com a cidade é notório e só não vê quem não quer
enxergar ou está mancomunado com os corrúptos. Não se trata de imaginação, não
são moínhos cujas pás abanando o vento assustam os menos desavisados. A
corrupçao é real, a impunidade é real e a omissão daqueles que deveriam fazer
as reformas políticas, judiciárias e tributárias que se fazem necessárias
também é real. É real, mas parece irreal. Já que entra governo, sai governo e
as reformas não saem do papel.
Não bastasse isso e também o povo parece anestesiado pelo
consumismo, e na hora de votar e escolher pessoas responsáveis para
representá-los, se omite, deixando-se levar por interesses mesquinhos,
particulares. É patético!
Dom Quixote, ao regressar ao seu povoado reconheceu que não
era um herói, que heróis não existem. Tudo bem! Mas se não existem heróis, até
quando teremos que aguentar os “bandidos” que grassam impunemente por aí?
Abrem-se processos, fecham-se processos e os (ir)responsáveis acabam se safando. Desse jeito, não tem como não sentir-se como o “cavaleiro da
triste figura” lutando contra moinhos de vento, inexpugnáveis, invisíveis,
mas não imaginários...
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