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terça-feira, 16 de agosto de 2011

O PAI - RUBEM ALVES


















Pois eu não tinha intenção alguma de escrever sobre o dia dos pais. 
Mas, de repente, passando os olhos num livro que uma amiga me enviou, 
encontrei a seguinte afirmação: “Tomar uma decisão de ter um filho é 
algo que irá mudar sua vida inteira de forma inexorável. Dali para frente, 
para sempre, o seu coração caminhará por caminhos fora do seu corpo.“

Aí as idéias puseram a se movimentar por conta própria. 
Pensei na minha condição de pai. É verdade: pai é alguém que, 
por causa de um filho, tem sua vida inteira mudada de forma 
inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. 
É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. 
Um pai biológico se faz num momento. Mas há um pai que é um 
ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos 
fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho 
(muito embora o filho não saiba disto).

Lembrei-me dos meus sentimentos antigos de pai, diante dos 
meus filhos adormecidos. Que felicidade enche o coração de um 
pai quando o filho que ele tem no colo se abandona e adormece! 
Adormecida, a criança está dizendo: “tudo está bem; 
não é preciso ter medo“. Deitada adormecida nos braços-ninho 
do seu pai ela aprende que o universo é um ninho! 
Não importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam 
todos destinados ao abandono e ao esquecimento! 
A alma não se alimenta de verdades. Ela se alimenta de fantasias. 

 É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros 
na vida de uma criança. É impossível calcular a importância 
desses momentos efêmeros na vida de um pai. O efêmero e o 
eterno abraçados num único momento! Mas logo o pequeno 
pássaro começará a ensaiar seus vôos incertos. Agora não 
serão mais os braços do pai, arredondados num abraço, que 
irão definir o espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir 
para que o ninho fique maior. E serão os olhos do pai, no espaço 
que seus braços já não podem conter, que irão marcar os 
limites do ninho. A criança se sente segura se, de longe, 
ela vê que os olhos do seu pai a protegem. Olhos também são colos. 
Olhos também são ninhos. “Não tenha medo. Estou aqui! 
Estou vendo você“: é isso o que eles dizem, os olhos do pai.

 O que a criança deseja não é liberdade. O que ela deseja é 
excursionar, explorar o espaço desconhecido – desde que 
seja fácil voltar. O tempo passa. Os pássaros tímidos 
aprendem a voar sem medo. Já não necessitam do olhar 
tranquilizador do pai. É a adolescência. Ser pai de um adolescente 
nada tem a ver com ser pai de uma criança. Pobre do pai que 
continua a estender os braços para o filho adolescente, como 
na tela de Van Gogh! Seus braços ficarão vazios. Como se 
envergonharia um adolescente se seu pai fizesse isso, na presença 
dos seus companheiros! É o horror de que os pássaros companheiros
de vôo o vejam como um pássaro que gosta de ninho! 
Adolescente não quer ninho. Adolescente quer asas. 
Os ninhos, agora, só servem como pontos de partida para vôos em todas as direções. 

Liberdade, voar, voar... A volta ao ninho é o momento que não se deseja. 
Porque a vida não está no ninho, está no vôo. Os ninhos se transformam 
em gaiolas. Se eles procuram os olhos dos pais não é para se 
certificar de que estão sendo vistos mas para se certificar de 
que não estão sendo vistos! Aos pais só resta contemplar, 
impotentes, o vôo dos filhos, sabendo que eles mesmos não podem ir. 
Nos espaços por onde seus filhos voam os ninhos são proibidos. 
Mas eles terão de voltar ao ninho, mesmo contra a vontade. 
E o pai se tranquiliza e pode finalmente dormir ao ouvir, de 
madrugada, o barulho da chave na porta: “Ele voltou...“

Mas chega o momento quando os filhos partem para não mais voltar. 
Através da minha janela vejo um ninho que rolinhas construíram 
nas folhas de uma palmeira. A pombinha está chocando seus ovos. 
Vejo sua cabecinha aparecendo fora do ninho. Mas numa outra 
folha da mesma palmeira há um outro ninho, abandonado. 
Esse é o destino dos ninhos, de todos os ninhos: o abandono. 
Esse é o destino dos pais: a solidão. Não é solidão de abandono. 
E nem a solidão de ficar sozinho. É a solidão de ninho que não 
é mais ninho. E está certo. Os ninhos deixam de ser ninhos 
porque outros ninhos vão ser construídos. Os filhos partem 
para construir seus próprios ninhos e é a esses ninhos que eles 
deverão retornar.

Assim é na natureza. Assim é com os bichos. Deveria ser conosco também. 
Mas não é. Quem é pai tem o coração fora de lugar, coração que caminha, 
para sempre, por caminhos fora do seu próprio corpo. Caminha, 
clandestino, no corpo do filho. Dito pela Adélia: “Pior inferno é 
ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar dele.“ Dito pelo Vinícius, 
escrevendo ao filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o 
teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas 
mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que 
cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua...“

Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e 
abandonem a proteção do ninho. Eu mesmo sempre os empurrei 
para fora. Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções 
como andorinhas adoidadas. Sei que é inevitável que eles 
construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho 
abandonado no alto da palmeira... Mas, o que eu queria, 
mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo...

Uma adaptação do texto original. Campinas, agosto de 2011

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