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quinta-feira, 13 de maio de 2010

CINDERELA PARA TEMPOS MODERNOS

Rubem Alves

Era uma vez um casal que era feliz sem ser rico. O pai era professor, gostava de brincar com as crianças e achava que ler era a coisa mais divertida do mundo. A mãe era artista e tocava flauta doce. Moravam numa casa modesta, com um jardim na frente e um pomar nos fundos. Tinham uma filha chamada Bruna. Bruna desde pequena dormia ouvindo sua mãe tocar flauta e seu pai contar estórias. Cresceu, assim, amando música e leitura, coisas que trazem alegria e tornam bonita a alma.
Ao lado de sua casa vivia um casal que era rico e infeliz. A mãe se chamava Monique. Era muito bonita e adorava aparecer nas colunas sociais. A beleza requer cuidados constantes. Monique, assim, gastava seu tempo e seu dinheiro com cabeleireiros, manicures, clínicas de estética, spas, regimes, operações plásticas, lojas, perfumes e jóias. Suas duas filhas se chamavam Michelle e Brigitte, nomes franceses que, para ela, eram o máximo de elegância. Monique fora uma educadora bem-sucedida, tanto assim que suas filhas em tudo se pareciam com ela. Gostavam de tudo que sua mãe gostava e gastavam tanto quanto sua mãe gastava. Com vidas assim socialmente intensas, não lhes sobrava tempo para coisas de somenos importância que nada acrescentavam à sua beleza, tais como poesia e música. O pai era um homem solitário deixado num canto, pois não conseguia conversar nem com sua mulher, nem com suas filhas. Refugiou-se numa edícula que fez construir no fundo do quintal. Ali se trancava e se dedicava à leitura e à música. O livro de que mais gostava era A morte de Quincas Berro D'água, de Jorge Amado, porque julgava que ele e Quincas Berro D'água estavam ligados por um destino comum.
Aconteceu, entretanto, que a mãe de Bruna morreu. Não houve sepultamento porque ela pediu para ser cremada e suas cinzas foram soltas ao vento sobre o mar.
Na mesma ocasião, o marido de Monique resolveu seguir o exemplo de Quincas Berro D'água. No dia da sua aposentadoria, que ele mantivera em segredo, voltou para casa do trabalho, foi para seu quarto, pegou uma mala e nela colocou suas roupas. Encaminhou-se, então, sorratei-ramente para a porta da saída, no que foi visto por sua mulher e suas filhas. Elas começaram a esbravejar todas ao mesmo tempo, pedindo explicações para aquele ato insólito: “Como se atreve a sair assim, sem permissão, carregando uma mala?”. Ele as olhou em silêncio, lembrou-se de Quincas Berro D'água, ficou vermelho e soltou um urro que foi ouvido em todo o quarteirão: “Jararacas!”. Com essa palavra serpentina, saiu de casa e nunca mais foi visto.
Monique não sentiu a menor falta do marido. Sentiu mesmo um certo alívio. Mas mulher sem marido fica sempre numa situação embaraçosa em festas e jantares. Sem o marido, era como se ela estivesse sem um sapato. Não ia socialmente bem. Por isso, ela ficou logo de tocaia, à espera do momento oportuno para lançar seu charme sobre o pai de Bruna, vizinho viúvo disponível. Ele seria o sapato que lhe faltava. E o impossível aconteceu. Roído pela tristeza, enfraquecido nos miolos, ele se apaixonou pela megera. Isso não é de estranhar porque, assim como os homens mais saudáveis podem, repentinamente, ficar gravemente doentes, os homens mais sábios podem, repentinamente, ter um surto de loucura. Contrariando os conselhos de Bruna, que percebia o que estava acontecendo, seu pai se casou com Monique, em cuja casa foram morar, porque era muito maior.
Mas a felicidade durou pouco. Porque a felicidade depende da capacidade das pessoas de conversar longamente, mansamente, numa boa. Conversa é como frescobol, bola pra lá, bola pra cá. Bruna e seu pai jogavam com livros, poesia, música, pintura, jardinagem. Mas Monique, Michelle e Brigitte só sabiam jogar com festas, vestidos e colunas sociais.
Bruna, então, era deixada nos cantos, sozinha. Passou a ser motivo de zombaria. Até que se cansou e tomou a decisão de se refugiar na edícula do fundo do quintal, onde se dedicava a ler e a tocar flauta doce, de um jeito parecido ao da Gata Borralheira, que se refugiara na cozinha, longe da madrasta e de suas filhas malvadas.
Vivia naquela cidade um empresário muito rico. Era viúvo e tinha um só filho, que nascera cego. Seu pai, entristecido, deu-lhe um nome lindo, tirado de um antiqüíssimo mito grego. Era o nome de um sábio que era cego: Tirésias. Tirésias era um lindo jovem, corpo harmonioso, inteligente, culto e destinado a herdar a fortuna do pai. Seu pai se angustiava pensando que, com sua morte, o filho ficaria sozinho. Cego, ele precisava arranjar uma esposa que cuidasse dele. Com o que Tirésias concordava: “É certo, meu pai. Mas eu só me casarei com uma mulher com quem terei prazer em conversar até o fim dos meus dias, uma mulher que seja sensível e culta...”.
Onde descobrir tal esposa para seu filho? Ele teve, então, uma idéia: um baile! Tirésias dançava maravilhosamente! Flutuava no escuro! Dançando, tendo uma moça em seus braços, eles conversariam... E, quem sabe, assim, ele descobriria a mulher com quem teria prazer em conversar pelo resto de sua vida!
Dito  e feito. Anunciou-se o baile. Todas as jovens e suas mães se agitaram. As mães sonham sempre com um genro rico... Michelle e Brigitte fizeram vestidos novos, foram ao cabeleireiro, à manicure, escolheram jóias e perfumes. Quando viram Bruna, caíram na risada. Bruna usava um velho vestido que sua mãe lhe fizera. E ela mesma penteara seus cabelos. “Você não tem vergonha? Está parecendo uma mendiga. Todos vão rir de você!” Bruna não disse nada. Não tinha nada para dizer.
O salão de bailes estava cheio de moças lindas e chiques. A orquestra começou a tocar. As mães, esperançosas, traziam suas filhas até Tirésias. Ele as tomava delicadamente, começava a dançar e lhes fazia uma única pergunta: “Fale-me sobre as coisas de que você mais gosta!”.
As jovens, que só conheciam o mundo da visão, falavam de vestidos, viagens, festas, televisão... Tirésias pensava: “Não, não terei prazer em conversar com essa moça até o fim de minha vida...”. Pedia licença, parava de dançar e começava a dançar com outra jovem. E a mesma coisa se repetia. Tirésias já havia perdido as esperanças, quando chegou a vez de Bruna. “Fale-me sobre as coisas de que você mais gosta”, ele lhe disse. E ela começou a falar sobre livros, sobre poesia, sobre música... Tirésias ficou encantado. Não queria parar de dançar. Bruna ficou em silêncio. Tirésias então lhe disse: “Quando te vi amei-te já muito antes...”. Esse é um verso de Fernando Pessoa, a mais linda declaração de amor jamais escrita! Bruna não deixou que ele terminasse. Completou o segundo verso: “Tornei a encontrar-te quando te achei...”. O rosto de Tirésias se encheu de felicidade. Abriu-se num sorriso. Ah! Aquela moça conhecia o seu mundo! Com ela, ele poderia conversar pelo resto de sua vida!
Michelle e Brigitte, que observavam de longe, perceberam o que estava acontecendo e decidiram interferir. O relógio da igreja batia as 12 badaladas: meia-noite! As duas correram para Bruna e lhe contaram uma mentira: “Seu pai telefonou. Acabou de chegar de viagem. Está com dores no peito. Pode ser um infarto. Pediu que você vá para levá-lo ao hospital...”. Bruna não hesitou. Saiu correndo, deixando Tirésias com os braços vazios...
O rosto de Tirésias se cobriu de tristeza. Havia deixado escapar o amor que sempre procurara. Nem mesmo seu nome ele sabia. Como encontrá-la? Parou de dançar e saiu do salão. E com isso a festa acabou.
Na cama, sem dormir, ele pensava: “O que fazer para encontrá-la?”. Até que uma maravilhosa idéia lhe ocorreu. Convidou todas as moças a que viessem conhecer o seu jardim. Foi um alvoroço geral! Quem sabe uma delas seria escolhida!
Tirésias as recebia, uma a uma, assentado num banco do jardim. Os jasmins estavam floridos. O perfume era delicioso! Quando elas se assentavam, ele dizia uma única frase. E ficava em silêncio. As moças se sentiam perdidas, sem saber o que dizer. Começavam a tagarelar, dizendo tolices. Ele, então, delicadamente as despedia e pedia que uma outra entrasse. E a mesma coisa acontecia.
Até que chegou a vez de Bruna. Tirésias não a reconheceu. Não podia ver seu rosto. Disse, então, a mesma frase que dissera para todas: “Quando te vi, amei-te já muito antes...”. E Bruna completou: “Tornei a encontrar-te quando te achei...”.
Não precisaram dizer palavra alguma. Abraçaram-se, rindo de felicidade. A busca chegara ao fim.
O casamento foi marcado e todas as moças, suas mães e seus pais foram convidados.
A festa foi maravilhosa, com música, danças, fontes luminosas, sinos, fogos de artifício, e coisas deliciosas de beber e comer.
E todas as jovens receberam, como recordação, um presente de Tirésias: um livro, embrulhado e amarrado com uma fita amarela: Obra poética, de Fernando Pessoa, com uma dedicatória que dizia assim: “Esperamos, Bruna e eu, que você aprenda a gostar de poesia. Pois é da poesia que nasce o amor”.
Quanto a Tirésias e Bruna, viveram felizes muitos anos, até a velhice, conversando sempre alegremente sobre as coisas que tornam bela a vida... E mesmo depois de esgotados os fogos efêmeros do amor jovem, eles continuaram a se amar aquecidos pela chama suave da ternura, até o fim.
 

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