Jornal Correio Popular, Campinas, 28 de março de 2010
POR ONDE VAGARÁ O SEU EU?
Rubem Alves
O seu rosto permanece impassível. Nenhum sinal, seja de alegria, seja de tristeza. Parece que tudo lhe é indiferente. Seu corpo magro permanece consciente do mundo ao seu redor. Sei disso porque ele passa pelas portas sem esbarrar, não tropeça e sobe degraus sem hesitar.
O seu rosto permanece impassível. Nenhum sinal, seja de alegria, seja de tristeza. Parece que tudo lhe é indiferente. Seu corpo magro permanece consciente do mundo ao seu redor. Sei disso porque ele passa pelas portas sem esbarrar, não tropeça e sobe degraus sem hesitar.
Quando o percebi pela primeira vez não sabia do círculo de solidão em que se encontrava. Puxei conversa. Inutilmente. Ele me olhou com a mesma indiferença, disse algo que não entendi, e continuou a fazer o que estava fazendo em silêncio, como se eu não estivesse mais ao seu lado. Uma frase começou a me martelar a cabeça. Mas eu não sabia nem de onde viera e nem quem a escrevera. Até que a memória a identificou. “Restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos. Por onde andaria a verdadeira Cecília?” Foi escrito pelo Drummond, numa apresentação da Cecília Meireles. Isso acontece freqüentemente com os poetas e artistas. Eles se ausentam e entram em êxtase, ficam fora do lugar onde aparentam estar, distraídos. Mas basta que pronunciemos o seu nome para que eles acordem do seu êxtase e voltem ao mundo em que estamos.
Sentia coisa parecida ao olhar para ele: dava-me a impressão de que não estava onde eu o via. Mas não se tratava de êxtase poético porque, por mais que o seu nome fosse pronunciado, ele não acordaria. Seu êxtase era sem volta.
Por onde andaria? Ele era uma presença habitada por uma ausência, uma casa sem morador. Mas onde estaria o morador? O que acontecera com ele?
É verdade que ele tem consciência das coisas materiais do mundo que o cerca. Ele conhece a casa. Mas nada sabe do que está acontecendo dentro dela. O humano lhe foi roubado. Nem mesmo sabe o que está fazendo dentro daquela piscina de hidroginástica, mexendo braços e pernas, indo de um lado para outro. De repente ele sai da água porque precisa tomar um avião. Por que mecanismos aquele avião terá entrado na sua vida mental naquele momento?
Lembrei-me do meu pai. Não foi Alzheimer. Parece que foi um AVC. Traduzido em linguagem simples um AVC quer dizer: houve um curto circuito no cérebro de modo que todos os arquivos saíram dos seus lugares. O que existe lá dentro é caos. Tolo daquele que tentar por os arquivos em ordem. Isso não é possível.
Aquela velhinha muito amada viu-se repentinamente num mundo maravilhoso em que ela era dona de inumeráveis castelos espalhados por todo o mundo. Cada visitante recebia um castelo de presente. O meu está na Escócia. Engajavamo-nos então numa alegre conversa sobre os jardins do castelo que ela me dera... E ela ficava feliz. A felicidade dela era verdadeira, real, e o seu riso revelava o que ia dentro da sua alma. Creio que não existe diferença entre a alegria sobre um objeto que não existe, virtual, e a alegria por um objeto que existe, real. Você me responderá: a diferença está em que um objeto é real e o outro é virtual. Sim, certo. Mas eu não estou me referindo aos objetos, razão da alegria. Estou me referindo à alegria mesma, como experiência existencial. Acho que não há diferença.
Voltando ao meu pai. O seu AVC não o transportou para um mundo encantado de castelos. Transportou-o para um mundo escuro e sinistro. Ele se encontrava no quarto, olhos imensamente abertos, mexendo no guarda-roupas. ( Ele também conhecia os objetos materiais do seu mundo: o guarda-roupas, as camas, o fogão, a janela. Sabia os seus nomes e por eles transitava sem problemas ). Perguntei-lhe: “O que é que o senhor está procurando, papai?” “Estou procurando o meu terno preto”, ele respondeu. “Mas para que o senhor quer um terno preto?” Ele me respondeu: “Você não está ouvindo o repicar fúnebre dos sinos?” Mas não havia nenhum sino tocando e nem ele tinha um terno preto. Parafraseando a Cecília: “O corpo naquele quarto. A alma em distantes terras...” Eu falava a partir do mundo de cá, do qual ele se ausentara. Ele falava a partir do mundo de lá, em que eu não podia entrar.
O que é digo quando digo “eu”? O “eu” não é o conjunto das minhas experiências. Eu poderia ter tido experiências de vida completamente diferentes das que tive. Como, por exemplo, se eu tivesse sido um agricultor, um marceneiro ou um criminoso. Agricultor, marceneiro ou criminoso, não importa: em qualquer uma dessas situações eu diria “eu”. O “eu” não é o conjunto das minhas experiências. Já tive as idéias mais malucas, idéias que hoje me envergonham. Mas, quando eu tinha tais idéias, eu dizia “eu”, que é o mesmo “eu” que eu digo agora quando zombo delas. Eliminadas todas as minhas experiências e idéias, o que sobra? Sobra o “eu”, uma entidade sem conteúdo, completamente vazia de quaisquer idéias, que mora em mim. O que é que esse vazio chamado “eu” faz? Sua função é a de bibliotecário da grande biblioteca que sou eu. Ele não é um livro. Não tem conhecimento algum. Mas tem o poder e missão de colocar os livros em ordem.
Imaginemos agora que haja um terremoto. A biblioteca é arrasada. Todos os livros são tirados dos seus lugares. O que sobra? Sobram os livros em desordem. E o “eu” bibliotecário, onde foi parar? Não sei. Só sei uma coisa: ele não é mais o senhor da biblioteca. Parece que emigrou para um outro lugar. O corpo é uma biblioteca arrasada sem bibliotecário. Será que aquele corpo pode falar a palavra “eu”? Existirá um “eu”? Onde? Casa sem morador?
Olho para ele e me pergunto: “Por onde vagará o seu eu?” Não sei. Só sinto uma imensa tristeza diante daquela biblioteca arruinada.
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