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sábado, 16 de janeiro de 2010

LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA ANULA CIVILIDADE


MARY PERSIA
da Folha Online


As imagens de saques em meio às ruínas de Porto Príncipe rodaram o mundo e se destacaram em meio ao choro e à desolação dos haitianos em ruas, praças e tendas improvisadas. No cenário de destruição, a insegurança em relação à própria sobrevivência passa a ditar as ações das vítimas do terremoto que devastou o Haiti na terça-feira (12).
Para os haitianos, a incerteza quanto ao futuro diz respeito não ao próximo ano ou década, mas à próxima hora. Onde não há quase nada, a civilidade desaparece. "Vemos o desespero ali. Existe uma perda de controle das pessoas", diz Leila Tardivo, livre-docente do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo). "Muito da própria civilidade se perde. Há um desespero mais que animalesco na briga por comida."

Para a psicóloga, o mundo está diante de um vórtice de estresse incomensurável. "É quase uma horda primitiva, e digo sem qualquer preconceito. É a perda da civilidade, da evolução como homem, provocada por uma situação extremada que não podemos julgar --não nos é dado esse direito. Qualquer um de nós poderia fazer aquilo."
Diferentemente do que as imagens divulgadas na TV e na internet podem sugerir, o ato de saquear comida pode ser a face de um contexto emocional que não tem relação com o egoísmo, ressalta Eliana Torga, coordenadora da comissão de emergências e desastres do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. "As pessoas que saquearam podem ter tido um ato altruísta, no sentido de dar aquele alimento para o filho ou para a mãe. É uma situação muito além dos limites dele", considera. "Aquela realidade mexe tão profundamente com questões básicas do ser humano que eles perdem os controles sociais que todos temos, de moralidade." 


Angela Coelho, colaboradora do Conselho Federal de Psicologia, esteve no Peru em 2007 para prestar auxílio às vítimas do terremoto em Pisco. Para ela, sentimentos e ações de toda espécie são esperadas após um desastre. "Não ter nenhuma reação seria estranho", diz a psicóloga, que estuda o tema há quase 20 anos.
Hoje, o Haiti é um terreno mais que favorável ao estresse pós-traumático, numa equação cujos fatores são muito mais antigos que os tremores de magnitude 7,0. "O desenvolvimento do quadro de estresse está ligado a comprometimentos anteriores ao evento. As pessoas já eram vítimas de problemas antes do desastre", diz Ângela. Se antes do terremoto os sentimentos de insegurança e desordem estavam sempre presentes, agora eles são gritantes.

Apoio e vitimização
A extensão dos problemas psicológicos dos haitianos terá relação direta com a demora no atendimento das necessidades básicas de sobrevivência, lembra Eliana. "Quanto mais rápido for restabelecida a normalidade da vida, menor o comprometimento", diz a psicóloga, referindo-se tanto a questões emocionais como físicas. "O fato de ter fé ajuda muito a manter a esperança. Mas o que vai confortá-los é o atendimento das necessidades básicas. É preciso um abrigo, de lona que seja. Um psicólogo pouco ou nada poderá fazer se não houver o que comer."
No trabalho da ajuda humanitária para prover comida, abrigo e um mínimo de sanidade, é importante não subestimar as capacidades das vítimas e buscar contemplar a cultura e a experiência locais, afirma Márcio Gagliato, psicólogo que atuou em regiões de conflito como Timor Leste, Ruanda e Sudão. 



"É preciso ver essas pessoas como sobreviventes ativos. Eles são os proprietários da sua localidade, têm uma cultura. É necessário colocá-los nesse processo", diz o especialista. "É algo fundamental para pensar no processo de reconstrução."
Assim, a comunidade mostra-se mais importante do que um psicólogo, e as equipes de auxílio devem estar atentas a isso. "Coisas simples como facilitar a comunicação entre eles para que se encontrem são muito importantes", diz Gagliato.
Em 2004, quando um tsunami parte da Indonésia e outros países asiáticos, a organização local foi um ponto de apoio fundamental para a reconstrução. "A ajuda humanitária internacional ficou surpresa com as comunidades. Eles se reorganizaram e formaram guetos", relata. "É importante não vitimizarmos mais ainda as vítimas."

Um comentário:

Maro Radomile disse...

Triste, real e no limite.
Bom domingo.
Marô