Nikelen Witter *
O título aqui poderia ser também a já famosa frase: “sim, nós
podemos”. Não a dita pelo presidente norte-americano Barack Obama. Mas a
dita pela presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff, a uma menina de 9
anos que lhe perguntou se mulher podia ser presidente da República. Ah,
sim menina, nós podemos. Eu mesma lhe diria mais. Diria para que
incluísse isso em suas brincadeiras. Uma hora você finge ser professora,
noutra médica, veterinária ou advogada. Se quiser ser juíza, delegada
ou polícia também pode. É claro que terá vezes em que você irá querer
ser princesa ou uma bruxa muito inteligente, mas, acredite, nada no
mundo pode impedir você de querer ser presidente da República.
Pode soar estranho que uma menina, em pleno século XXI, apresente uma
dúvida assim. Mas, a verdade, é que esse estranhamento está longe de
poder ser generalizado. Basta pensarmos na quantidade de
manifestações machistas durante essa campanha presidencial e teremos um
quadro do quanto as possibilidades ainda se apresentam restritas para o
próprio entendimento das meninas. E, acredite, não estou falando apenas
sobre aquelas que vivem nas periferias, nos bolsões de miséria, nas que
catam comida e recicláveis nos lixos ou caminham quilômetros para
poderem abastecer de água suas casas.
Estou me referindo às garotinhas
de classe média e alta, que estudam em boas escolas (públicas ou
particulares), que têm acesso a livros e que escolhem seus brinquedos
pelos comerciais que veem na TV.
É justamente nestes espaços de consumo que, ao que parece, uma ativa
parte da nossa cultura têm trabalhado para que nossas meninas continuem
expostas ao machismo atávico que grassa pelo Brasil. Os limites aos
sonhos das garotas entram nas nossas casas mesmo que a gente não queira.
Eles estão lá, o tempo todo, dizendo o que é aceitável para uma
menina e negando, ao mesmo tempo, que os sonhos delas sejam sem
fronteiras.
Estou exagerando? Tem certeza? Você tem prestado atenção
nos filmes publicitários veiculados na TV (inclusive nos canais infantis
pagos)? Será que ninguém percebe o absurdo de um brinquedo ser uma pia
de lavar louças cor-de-rosa que se anuncia: “igualzinha a da mamãe, só
que mais divertida”! Qual palavra desta frase não lhe parece ofensiva? A
mim todas. E adicione aí o fato de que o comercial não tem meninos.
Sim, porque no mundo encantado e cor-de-rosa os meninos sabem que seu
lugar não é lavando a louça, mas lavando carro no lava-jato que é igual
ao que o papai usa.
Como, pergunto, nossas meninas não vão crescer duvidando que uma mulher
possa ser presidente? É difícil achar que uma coisa assim é possível
quando, para os “reclames”, veiculados junto com seu desenho favorito,
as únicas perspectivas para uma mulher parecem ser uma pia cheia de
louça e criar bebês que comem, arrotam, ficam doentes, fazem xixi e
cocô? Sim, estas são bonecas que, na maior, parte do tempo são
oferecidas a elas. As bonecas que “imitam” a realidade. E você, mamãe,
deve comprá-las para que sua filhinha “aprenda brincando”. Afinal, o que
seria mais importante para uma futura jovem mulher do que aprender a
ser uma boa dona-de-casa, que sabe o melhor sobre alimentação,
puericultura e higiene?
Ora, a maternidade é uma coisa maravilhosa, e ser dona ou dono de casa é
uma necessidade que não tira nenhuma dignidade de quem faz somente
isso. Não haveria problema com os comerciais se eles fossem apenas um ou
dois e se o texto fosse menos limitante das capacidades femininas e
masculinas. Mas a questão é que as crianças são bombardeadas com
brinquedos e textos publicitários cuja intenção parece ser “aliciá-los”
(a palavra é forte, mas é essa mesma) para ocuparem os papéis
tradicionais da
família burguesa ocidental.
O fato de não haver grandes manifestações
contrárias a este tipo de comercial é preocupante. Já pensaram que pode
ser porque, no fundo, as os textos estão é fazendo eco às coisas que não
questionamos por parecerem “naturais”? Meninas brincam de cozinhar,
lavar louça e cuidar de bebês. Meninos lavam carros, jogam futebol e
vídeo-games. Os brinquedos continuam a ser elaborados e vendidos de
forma sexista, é assim que nós os compramos, e é assim nossos filhos os
absorvem.
Imagino que se alguém se colocar contra isso, vão dizer que a pessoa
está clamando pela censura ou sendo preconceituosa com bonecas-bebês e
brinquedos que imitam utilidades domésticas. Por isso quero deixar bem
claro que não acho que as bonecas em si estão erradas. O que me incomoda
é o texto com o qual elas são apresentadas e o subtexto que, ao invés
de incitar as meninas a desejarem o mundo, sugere que o paraíso está em
ter
uma cozinha super equipada.
Por outro lado, não estou fazendo um
tipo de apologia que diz que o mundo seria melhor com mais mulheres no
comando. Não considero que as mulheres que exercem cargos públicos (ou
que venham a desejar isso) façam, por serem mulheres, governos melhores
que os dos homens. A quase ex-governadora do Rio Grande do Sul é um
exemplo de que um governo ruim e autoritário pode vir de qualquer lado.
Minha oposição é contra tudo o que se organiza de forma a limitar os
sonhos e os horizontes das crianças. Um fogãozinho pode ter meninos
figurando no comercial (muitos meninos se interessam por cozinhar). E
também a pia poderia ser vendida para eles, pois é igual a que todo
mundo tem em casa. Em outras palavras: a pia não é da mamãe. Se as
coisas continuarem nesse caminho, logo teremos organizar defesas para a
Barbie. Afinal, os machistas de plantão ainda não se deram conta de que
ela, embora fútil, sempre foi uma
profissional. Ela namorou o Ken por 40 anos antes de eles terminarem o
relacionamento. E agora, dizem que ela foi vista saindo com Max Steel.
Garanto que logo vai aparecer alguém falando que ele é jovem demais para
ela e que, aos cinquenta, ela deveria era aprender a fazer geléia.
* Professora e historiadora