Taeco Carignato
Traficante ri e troca provocações com polícia durante tiroteio
no Complexo do Alemão (foto: Reuters)
Muito se falou sobre as recentes violências no Rio de Janeiro. A mídia se regalou com a oportunidade de captar e transmitir cenas espetaculares reforçadas por um aparato bélico fora de proporções. Não que esse aparato não fosse necessário, pois a demonstração de força por parte do Estado fez com que os traficantes recuassem também no propósito de demonstração de força, espalhando medo e terror na cidade. Não podemos negar a eficácia da participação militar na pacificação. Chega a ser irônico falar em "pacificação militarizada", mas não podemos negar que a conjunção de forças de repressão e o aparato bélico evitaram o confronto e a chacina que costumam ocorrer nesse tipo de operação policial-militar.
Contudo, assustam-nos os termos de guerra empregados pelas autoridades e pela mídia - batalha, ocupação, confronto, conquista territorial, guerrilha - e o coroamento da "vitória" com o hasteamento da bandeira brasileira, tal como ocorreu em Iwojima. Triste nacionalismo fora de mão, em um local povoado de brasileiros, tão brasileiros quanto os soldados e policiais que acompanharam os blindados e os tanques de guerra. Os "estrangeiros" indesejados, os inimigos, foram encarnados nos traficantes. O secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, esqueceu-se que o "coração do mal" é habitado por milhares de brasileiros.
O conceito de "mal" normalmente é empregado para justificar uma ação coletiva - neste caso, ações de Estado - para eliminar uma pessoa ou grupo de pessoas não exatamente pelos seus crimes, mas por apresentar sinais da monstruosidade e incorporar o mal-estar que aflige a sociedade. Felizmente, não ocorreu o que geralmente acontece quando as coletividades se unem para extirpar o estranho que perturba a ordem interna, ou seja, não houve linchamentos, chacinas ou execuções sumárias. Por enquanto.
À ameaça no cotidiano da cidade, perpetrada pelas violências dos traficantes, o Estado respondeu com a marcha dos blindados. Foi um caso de emergência. Como afirmou o ex-secretário de Segurança Nacional, Luiz Eduardo Soares, na crise, ou seja, quando o paciente está na UTI apresentando um quadro agudo, empregam-se medidas extremas para impedir o agravamento da doença. Mas isso não resolve o problema da insegurança. A questão que Soares então coloca é: Por que não enfrentar com medidas a médio e longo prazos as condições geradoras dos quadros emergenciais?
Soares também chamou a atenção para o declínio dos traficantes dos morros. Transcrevo as suas palavras: "Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas - mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente."
"O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra."(www.cartacapital.com.br).
Ou seja, nada ainda mudou. Se os governos não tomarem providências políticas, sociais e educativas tão rápidas e tão eficazes quanto a intervenção policial-militar, tudo permanecerá não como antes, mas pior, principalmente para a população habitante do "coração do mal". Não nos enganemos: a página ainda não foi virada. O dia "D", o desembarque na Normandia nacional, é uma ficção. A "pacificação militarizada" não dá resultados. Veja-se o caso de Haiti, assolada pela cólera em pleno Século XXI. As operações policial-militares na erradicação dos "indesejados" podem produzir efeitos contrários. Os "alvos" desaparecem na multidão e agem na obscuridade. Veja-se o caso dos americanos no Iraque e Afeganistão.
As medidas educativas eficazes não se podem fazer esperar. Não dá para esperar uma geração ou duas para termos uma "juventude saudável". As novas formas de organização familiar, os novos padrões de consumo e de hedonismo, as políticas públicas para o menor e para o usuário de drogas, as crises institucionais, as diferentes visões sobre a criminalidade citadas pela antropóloga Alba Zaluar no seu livro Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas (FGV, 2004) devem estar presentes nos debates públicos. Pois esses bandos de criminosos não surgiram do nada, muito menos da pobreza. São produtos da nossa sociedade, de nossas convenções sociais.
Alba Zaluar, em sua pesquisa, verificou que seus jovens entrevistados revelaram a "internalização de uma ideologia individualista moderna em que a ilusão quanto à liberdade da pessoa estava atrelada a uma concepção extremamente autoritária de poder". Valoriza-se a absolutização da liberdade com os argumentos de "ninguém manda em mim, ninguém me influencia, ninguém me sugere". O líder cultuado é visto como um homem inteiramente autônomo, capaz de fazer valer sem restrições a sua vontade.
"Trata-se", afirma a antropóloga, "da visão do indivíduo atomizado, sem vínculos sociais com as gerações anteriores, que se protege em bandos formados pelos seus iguais para demonstrar força bruta. Nessa ideologia, cada indivíduo e cada bando lutam sozinhos para se defender de todos os demais. Por isso mesmo a guerra é um tema constante na fala desses jovens e uma realidade tão trágica em suas vidas."
Zaluar ainda chama a atenção para o ethos da masculinidade construído nos bandos criminosos sem o contraponto da feminilidade. Podemos notar, na recente onda de violências no Rio, uma única cena em que um suposto criminoso, vestido apenas de bermuda e fuzil, ri provocativamente para as forças policiais. Talvez o sujeito ainda não tivesse conhecimento do aparato militar que teria de enfrentar, mas a cena fornece a ideia de uma demonstração viril de desafio.
Outro documento que demonstra a virilidade provocativa dos criminosos foi realizado por Roberto Cabrini para a TV Record (Nassif Online em 28/11/2010). Em uma festa realizada no Largo do Coqueiro, no Complexo do Alemão, provavelmente em comemoração à morte de um rival do narcotráfico, encontra-se Luciano Martiniano da Silva, o "Pezão", cercado pelos seus capangas. As cenas impressionam. Silva, vestido com roupas de grife, uma camiseta preta que modelava a musculatura desenvolvida, segundo o repórter, com o auxílio de um comparsa/professor de jiu-jitsu, sorria feliz como se fosse um astro global. A única discrepância em seu physique du role eram as grossas e pesadas correntes de ouro.
Aliás, nada desse grupo de homens jovens e viris lembrava os pobres homens, os "soldados do crime" que, com sandálias "havaianas", bermudas e fuzis, se confrontaram com o aparato policial-militar de tamanha proporção, ou melhor, desproporção. Naquela festa, jovens brancos, negros e mulatos bebiam e dançavam, exibindo movimentos eróticos viris. O professor de jiu-jitsu, de bermuda e sem camiseta, portava uma arma na cintura. Os seguranças estavam fortemente armados com metralhadora e fuzis. Ninguém se preocupou em esconder o rosto, o que os investigadores a quem Cabrini exibiu o documentário consideraram como afronta e deboche de um grupo que se considerava acima da lei. Pelo menos, duas moças brancas, muito bonitas, exibiram-se diante da câmera, mostrando seus dedos envoltos por vários anéis de ouro.
Na verdade, o vídeo é uma exibição de um modelo de masculinidade que Zaluar define como desafiadora ou negadora de qualquer poder ou autoridade superior. No contraponto a esta virilidade está a humilhação. Quem já viu as cenas comuns nas ruas das grandes cidades em que policiais militares detêm os jovens que consideram suspeitos para, sob a mira de revólveres, mantê-los com os braços estendidos ao alto enquanto examinam seus corpos em busca de armas ocultas, pode entender o que é a humilhação à masculinidade. As cenas são deprimentes.
Contudo a demonstração de virilidade é tão falsa quanto a da "liberdade" exibida pelo chefão Luciano Silva na festa do Largo do Coqueiro. Ele desapareceu no dia anterior ao avanço das forças do Estado ao inexpugnável reduto do "mal", deixando seus "soldados" à mercê da morte. Morte no confronto com as forças da repressão e morte se traísse ou denunciasse seus comparsas. José Júnior, coordenador do Grupo AfroReggae, que mediou a rendição - "Eu não queria que os bandidos morressem", justificou - encontrou um grupo "emocionalmente arrasado" (Folha de São Paulo, 29/11/2010).
A ideia de coragem para o bando, inclusive a coragem de executar ações das mais condenáveis, deriva, segundo Zaluar, do ideal de masculinidade baseado na demonstração de força bruta e na lealdade dos chefes que encarnam o grupo de pares. Contudo, a antropóloga enfatiza que esses bandidos não deixam de ser convencionais, pois a afirmação da imagem viril depende da submissão às próprias leis de suas organizações fora-da-lei e também da instrumentalização do mercado.
Citando Habermas, Zaluar lembra que a autoafirmação da masculinidade viril apoiada na demonstração de força e da violência revela o domínio da totalidade subjugando os indivíduos, com o social se confundido ao dominante. "O indivíduo, nessa concepção, não é mais do que o espelho da sociedade, à qual tem necessariamente que se submeter. Nesse caso, não resta outra saída para o que almeja a independência senão marginalizar-se, recusar o social como totalidade, na ilusão de que, pela transgressão, poderá finalmente expressar sua singularidade e, portanto, sua liberdade. Um mundo convencional, apesar de toda a transgressão."
Taeco Toma Carignato
é psicóloga, psicanalista e jornalista. Doutora em psicologia social
(PUC-SP) e pós-doutora em psicologia clínica (USP), é pesquisadora do
Laboratório Psicanálise e Sociedade (USP) e do Núcleo de Pesquisa:
Violência e Sujeito (PUC-SP).
Um comentário:
Falar o obvio é uma constante hoje nas pessoas. Mas alguma coisa precisava ser iniciado e acho que não havia outra alternativa de troca de poder, no momento, no morro do alemão. O que fazer de agora em diante está em aberto e as pessoas que forem capazes da solução que se apresentem em canais abertos para tal. Sabe o Ditado " Falar é fácil, quero ver fazer. " Um abraço, Sonia.
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