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sexta-feira, 2 de julho de 2010

A TRILOGIA: CORPO, MULHER, LITURGIA!


 

Vera Chvatal

 

I. CORPO E ALMA



O pensamento ocidental foi por muito tempo oprimido pelo peso da normatividade repressiva da moral e da transcendência teológico-religiosa apoiada na idéia de uma culpa originária. Ambas consideram o corpo a causa das paixões da alma e as julgam como vícios em que caímos por nossa culpa.


Contrariando essa tradição, o filósofo Espinosa defendia o livre exercício do corpo e da alma, libertando-o. Para ele o ser humano é parte imanente da  Natureza e possui a peculiaridade  de tomar parte na atividade da própria Natureza. Rompendo com a dicotomia entre corpo e alma, consideradas como instâncias separadas e hierarquizadas, Spinosa afirmou: 


“Nem o corpo pode determinar o espírito a pensar, nem o espírito pode determinar o corpo ao movimento, ao repouso ou a qualquer outra coisa. Entendo por paixões tudo o que faz variar os juízos e de que se seguem sentimento e prazer.”
O corpo, para Espinosa, é uma unidade estruturada, formando um conjunto equilibrado de ações internas, interligadas por órgãos. Somos indivíduos e, sobretudo, indivíduos dinâmicos, pois nosso corpo é relacional, constituído por relações internas entre órgãos e relações externas com outros corpos.


E a alma? Alma é uma força pensante, e pensar é conhecer algo, afirmando ou negando sua idéia. Expressão finita de um força infinita, a  mente humana é uma idéia de seu  corpo e idéia dessa idéia. Ou, dito de outra forma, idéia de si mesma como idéia de seu corpo. Por isso, um pensamento é um ato de pensar que se realiza como imaginação, desejo e reflexão. 


Somos a unidade de um complexo corporal, formados pelos milhares de corpos que constituem nosso corpo, e de um complexo psíquico que são as inumeráveis idéias que constituem nossa mente (alma). A ligação entre o corpo e a alma não é algo que lhes acontece, mas é o que ambos são, quando são corpo e alma humanos. A alma é consciência  da vida de seu corpo e consciência de ser consciente disso.
 
Assim sendo, não existe o problema metafísico da união entre a alma e o corpo, pois é da essência da alma como atividade pensante, consciente, estar ligada ao seu objeto de pensamento, o corpo. A alma começa e vive num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Tem idéias imaginativas e vive imaginariamente. Para Espinosa imaginação significa percepção e imaginar é perceber sensorialmente as coisas e não inventar fantasias, como hoje se pensa. É uma atividade do corpo, não da alma. 


Por outro lado, afetando outros corpos e sendo por eles afetado de muitas maneiras, o corpo cria imagens de si a partir do modo como é afetado pelos demais corpos. Nascida de encontros corporais, a imagem institui o campo da  experiência vivida como relação imediata e abstrata com o  mundo. E tanto o corpo quanto a alma têm como principal interesse a existência e tudo quanto contribua para mantê-la. Referindo-se a esse desejo com o termo conatus, que significa "esforço para se conservar na existência", Spinosa diz que, no corpo, o conatus se chama apetite e, na alma, desejo. E o desejo é a essência do ser humano. 


Dizer então que somos apetite corporal e desejo psíquico é dizer que as afecções do corpo são afetos da alma. Isto é, as afecções do corpo são imagens que, na alma, se realizam como idéias afetivas ou sentimentos que são considerados paixões. E esses afetos (paixões) não são vícios, pecados, desordens e nem doenças. São efeitos necessários, pelo fato de sermos uma parte finita da Natureza e estarmos sujeitos a outros efeitos, mais numerosos, e que exercem poder sobre nós. 


Portanto, a relação originária da alma com o corpo e  de ambos com o mundo é a relação afetiva. Nossas idéias, sejam verdadeiras ou inadequadas, são afetos que, exprimindo nosso conatus, obedecem à lei natural que rege o esforço  de preservação na existência. Somos     causa adequada de nossos afetos quando são causados em nós por nossa própria potência interna e, então, somos livres e ativos. E somos causa inadequada de nossos afetos quando são causados em nós pelo poder de causas externas e, então, somos passivos e passionais. 


No entanto, desde tempos ancestrais essa cisão entre corpo e alma, entre razão (ação) e emoção (paixão) vêm acompanhando e influenciando o desenvolvimento humano. E, pior! As paixões vistas como pecados, vícios e doenças foram atribuídas ao feminino, à Mulher. Por que será?
  

 

Foto: Fênix renascendo das cinzas

 

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