Vera Chvatal
III. LITURGIA
Neste
mundo secular em que vivemos, via de regra nos deparamos com liturgias vazias e
rituais mecânicos que não nos dizem nada. Nada transmitem, carecem de
significações, de veracidade. Pois, o que dá sentido e valor à liturgia e seus
ritos é o poder a eles conferidos pela imaginação.
A
liturgia não é, como muita gente pensa, somente uma variação no rito. O termo liturgia provém do grego clássico leitourghia e deriva da composição de laós que significa povo, e de ergon
que quer dizer obra. Traduzido literalmente, liturgia significava serviço prestado ao povo ou serviço prestado para o bem comum.
Na
Grécia antiga o termo referia-se à apresentação do coro no teatro, ao armamento
de um navio, ao acolhimento de visitantes por ocasião das festas nacionais,
etc. Enquanto que no Egito significava qualquer prestação pública de serviço. No Antigo Testamento, o termo liturgia
é utilizado para designar o serviço cultual do templo, realizado pelos
sacerdotes e levitas, que foi como o termo se popularizou. Por esse motivo, via
de regra, entende-se por liturgia o culto público e oficial instituído por uma
igreja, algo relacionado ao ritual.
Quanto
ao rito, este tem um sentido
religioso quando designa o conjunto de cerimônias em uso nas comunidades
religiosas, e um sentido antropológico quando se refere ao processo, de cunho
simbólico, para o desenvolvimento dos costumes. Porém, num sentido bem mais
amplo, pode-se designar como liturgia qualquer cerimônia, seja de cunho
religioso ou não.
Entretanto, quero aqui estender
minha reflexão sobre liturgia, comentando uma passagem bíblica envolvendo uma
mulher e o homem Jesus de Nazaré. Como o mundo é (era?) dos homens,
compreende-se porque o relato de Lucas 7,36-50, permanece esquecido na mente da
maioria dos cristãos. Nesse texto a “pecadora” (mulher!) entra sem ser
convidada na casa de Simão, o fariseu, onde, sentado à mesa, entre outros
convivas, Jesus comia.
Plastifica-se
então uma feminina liturgia, belíssima, apaixonada, terna e reveladora do
desejo e do prazer da corporeidade, da sensibilidade, do toque. A mulher unge o
homem de Nazaré com perfume, banha-lhe os pés com lágrimas e seca-os, em
seguida, com seus longos e sedosos cabelos, cobrindo-os de beijos.
Carregado
de nuanças sensíveis, sinestésicas, o relato é um convite ao sonho, à
imaginação. A cena, envolvente, apela aos sentidos. A mulher se expondo em seus
mais íntimos sentimentos, entremeados nos olhares, silêncios, toques. Toques de
lágrimas, cabelos, lábios e mãos nos pés de Jesus. O sabor das lágrimas
ardentes na pele dela, na pele dele. Amor, ternura, dor, paixão, sofrimento,
prazer… Humanas emoções. Não há necessidade de palavras. A mulher úmida e seu
odor… Secreções! Cheiro de ungüento do vaso de alabastro… Perfume! E o homem de
Nazaré, pele exalando suor, envolto em manto de algodão e poeira, entrega-se
aos toques e retoques das carícias restauradoras num silêncio eloqüente e
fecundo. Encantamento!
No
entanto, essa liturgia simbólico-profética não veio a se tornar parte do
conhecimento evangélico dos cristãos, mesmo tendo Jesus afirmado que o ato
dessa mulher seria contado em sua memória (Marcos 14,9).
É preciso
salientar o fato de ter sido uma mulher a primeira a ungir Jesus com um
ungüento perfumado, muito raro e caro, celebrando uma liturgia
simbólico-profética. Simbólica, pois ungir
refere-se ao ato simbólico de derramar azeite sobre objetos ou pessoas em sinal
de consagração. Isto é, ungia-se a pessoa a fim de separá-la para uma tarefa
específica. Dessa forma os reis eram ungidos como libertadores para governar o
povo; os sacerdotes eram consagrados para servir a Deus através do sacerdócio;
e os profetas para pregar, ou falar, em nome de Deus. E profética, pois foi uma
antecipação à morte de Jesus, o Messias – termo este que significa o
“Ungido”. Atualmente, a unção foi
substituída pela imposição das mãos, permanecendo apenas a unção dos enfermos
com fins medicamentosos.
O belo, o
sagrado, o amor, a religião… São temas que encantam e elevam espiritualmente o
indivíduo. Essa magnífica cena narrada no evangelho de Lucas nos leva a pensar
que a experiência religiosa exige sensibilidade, inteligência e racionalidade.
Renato Mezan afirma que a inteligência é necessária, tanto para criar um
trabalho de arte, como para apreciá-lo. Da mesma forma que só a faculdade
lógica não basta para explicar qualquer tipo de arte, seja um trecho de música,
um poema ou uma liturgia, também apenas a emoção não basta para fazer surgir
arte; é preciso que ela seja transformada e expressa num meio plástico,
gestual, sonoro ou verbal, para que possa contribuir à gênese de uma obra.
Na língua
portuguesa a palavra liturgia é feminina. E a liturgia tem a ver com o
feminino, na medida em que é encontro, emoção, expressão dos apelos do coração.
Liturgia é como um encontro de
sensibilidades, onde beijos de afeto e demonstrações de ternura aquecem o
coração e arrepiam a pele. Prima pela sutileza das ações, pela delicadeza dos
gestos, pela intimidade afetiva. Silêncio, sons, gestos… a liturgia é feita de
acolhimento, de aconchego, como útero pulsante que acolhe e gera vida. É
momento fecundo, onde corporeidade/sexualidade, feminina/masculino,
emoção/razão, silêncio/sons se enlaçam e entrelaçam num encantado voluteio
sagrado/profano.
Liturgia
é arte, beleza, música, poesia, sabor… É vida! Resgate do divino no cotidiano,
universo de significações, a liturgia pode nos levar a uma experiência de tipo
fusional, o sentimento oceânico, o mergulhar na grande nebulosa maternal
descrito por Freud. Momento sagrado, liturgia tem a ver com fecundidade,
maternidade, transcendência, eternidade.
É preciso, pois, resgatar essa
liturgia-poesia-sabor em nossa arte de viver, acolhendo o novo, o diferente, sem cisões, exclusões ou
preconceitos. E recuperar a noção de unicidade, pois somos parte da Natureza e
a Natureza é parte de nós. Templos do divino, do sagrado, nossa humana liturgia
precisa abrir-se para o universo do qual somos parte!
Foto: Aya Sophia/Istambul
LEITURAS SUGERIDAS
CHAUÍ, M. Paixão, ação e
liberdade em Espinosa. Publicado na Folha de S. Paulo, Caderno Mais! 22 de
agosto de 2000.
DELUMEAU, J. História do
medo no Ocidente 1300-1800. Companhia das Letras: São Paulo. 1990.
Bíblia de Jerusalém.
Edições Paulinas: São Paulo, 1895.
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