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sexta-feira, 2 de julho de 2010

A TRILOGIA: CORPO, MULHER, LITURGIA!


Vera Chvatal

III. LITURGIA

Neste mundo secular em que vivemos, via de regra nos deparamos com liturgias vazias e rituais mecânicos que não nos dizem nada. Nada transmitem, carecem de significações, de veracidade. Pois, o que dá sentido e valor à liturgia e seus ritos é o poder a eles conferidos pela imaginação.

A liturgia não é, como muita gente pensa, somente uma variação no rito. O termo liturgia provém do grego clássico leitourghia e deriva da composição de laós que significa povo, e de ergon que quer dizer obra. Traduzido literalmente, liturgia significava serviço prestado ao povo ou serviço prestado para o bem comum.

Na Grécia antiga o termo referia-se à apresentação do coro no teatro, ao armamento de um navio, ao acolhimento de visitantes por ocasião das festas nacionais, etc. Enquanto que no Egito significava qualquer prestação pública de serviço. No Antigo Testamento, o termo liturgia é utilizado para designar o serviço cultual do templo, realizado pelos sacerdotes e levitas, que foi como o termo se popularizou. Por esse motivo, via de regra, entende-se por liturgia o culto público e oficial instituído por uma igreja, algo relacionado ao ritual.
 
Quanto ao rito, este tem um sentido religioso quando designa o conjunto de cerimônias em uso nas comunidades religiosas, e um sentido antropológico quando se refere ao processo, de cunho simbólico, para o desenvolvimento dos costumes. Porém, num sentido bem mais amplo, pode-se designar como liturgia qualquer cerimônia, seja de cunho religioso ou não.

Entretanto, quero aqui estender minha reflexão sobre liturgia, comentando uma passagem bíblica envolvendo uma mulher e o homem Jesus de Nazaré. Como o mundo é (era?) dos homens, compreende-se porque o relato de Lucas 7,36-50, permanece esquecido na mente da maioria dos cristãos. Nesse texto a “pecadora” (mulher!) entra sem ser convidada na casa de Simão, o fariseu, onde, sentado à mesa, entre outros convivas, Jesus comia.

Plastifica-se então uma feminina liturgia, belíssima, apaixonada, terna e reveladora do desejo e do prazer da corporeidade, da sensibilidade, do toque. A mulher unge o homem de Nazaré com perfume, banha-lhe os pés com lágrimas e seca-os, em seguida, com seus longos e sedosos cabelos, cobrindo-os de beijos.

Carregado de nuanças sensíveis, sinestésicas, o relato é um convite ao sonho, à imaginação. A cena, envolvente, apela aos sentidos. A mulher se expondo em seus mais íntimos sentimentos, entremeados nos olhares, silêncios, toques. Toques de lágrimas, cabelos, lábios e mãos nos pés de Jesus. O sabor das lágrimas ardentes na pele dela, na pele dele. Amor, ternura, dor, paixão, sofrimento, prazer… Humanas emoções. Não há necessidade de palavras. A mulher úmida e seu odor… Secreções! Cheiro de ungüento do vaso de alabastro… Perfume! E o homem de Nazaré, pele exalando suor, envolto em manto de algodão e poeira, entrega-se aos toques e retoques das carícias restauradoras num silêncio eloqüente e fecundo. Encantamento!

No entanto, essa liturgia simbólico-profética não veio a se tornar parte do conhecimento evangélico dos cristãos, mesmo tendo Jesus afirmado que o ato dessa mulher seria contado em sua memória (Marcos 14,9).

É preciso salientar o fato de ter sido uma mulher a primeira a ungir Jesus com um ungüento perfumado, muito raro e caro, celebrando uma liturgia simbólico-profética. Simbólica, pois ungir refere-se ao ato simbólico de derramar azeite sobre objetos ou pessoas em sinal de consagração. Isto é, ungia-se a pessoa a fim de separá-la para uma tarefa específica. Dessa forma os reis eram ungidos como libertadores para governar o povo; os sacerdotes eram consagrados para servir a Deus através do sacerdócio; e os profetas para pregar, ou falar, em nome de Deus. E profética, pois foi uma antecipação à morte de Jesus, o Messias – termo este que significa o “Ungido”.  Atualmente, a unção foi substituída pela imposição das mãos, permanecendo apenas a unção dos enfermos com fins medicamentosos.

O belo, o sagrado, o amor, a religião… São temas que encantam e elevam espiritualmente o indivíduo. Essa magnífica cena narrada no evangelho de Lucas nos leva a pensar que a experiência religiosa exige sensibilidade, inteligência e racionalidade. Renato Mezan afirma que a inteligência é necessária, tanto para criar um trabalho de arte, como para apreciá-lo. Da mesma forma que só a faculdade lógica não basta para explicar qualquer tipo de arte, seja um trecho de música, um poema ou uma liturgia, também apenas a emoção não basta para fazer surgir arte; é preciso que ela seja transformada e expressa num meio plástico, gestual, sonoro ou verbal, para que possa contribuir à gênese de uma obra.

Na língua portuguesa a palavra liturgia é feminina. E a liturgia tem a ver com o feminino, na medida em que é encontro, emoção, expressão dos apelos do coração. Liturgia é como um  encontro de sensibilidades, onde beijos de afeto e demonstrações de ternura aquecem o coração e arrepiam a pele. Prima pela sutileza das ações, pela delicadeza dos gestos, pela intimidade afetiva. Silêncio, sons, gestos… a liturgia é feita de acolhimento, de aconchego, como útero pulsante que acolhe e gera vida. É momento fecundo, onde corporeidade/sexualidade, feminina/masculino, emoção/razão, silêncio/sons se enlaçam e entrelaçam num encantado voluteio sagrado/profano.

Liturgia é arte, beleza, música, poesia, sabor… É vida! Resgate do divino no cotidiano, universo de significações, a liturgia pode nos levar a uma experiência de tipo fusional, o sentimento oceânico, o mergulhar na grande nebulosa maternal descrito por Freud. Momento sagrado, liturgia tem a ver com fecundidade, maternidade, transcendência, eternidade.

É preciso, pois, resgatar essa liturgia-poesia-sabor em nossa arte de viver,  acolhendo o novo, o diferente, sem cisões, exclusões ou preconceitos. E recuperar a noção de unicidade, pois somos parte da Natureza e a Natureza é parte de nós. Templos do divino, do sagrado, nossa humana liturgia precisa abrir-se para o universo do qual somos parte!

Foto: Aya Sophia/Istambul


LEITURAS SUGERIDAS
CHAUÍ, M. Paixão, ação e liberdade em Espinosa. Publicado na Folha de S. Paulo, Caderno Mais! 22 de agosto de 2000.
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente 1300-1800. Companhia das Letras: São Paulo. 1990.
Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas: São Paulo, 1895.

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