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sexta-feira, 2 de julho de 2010

A TRILOGIA: CORPO, MULHER, LITURGIA!


Vera Chvatal 

II. FEMININO - MULHER

O feminino, a mulher e seu corpo desde tempos imemoriais tem sido fonte de tabus, ritos e terrores. O medo de seu mistério, fecundidade e maternidade levou o homem a acusá-la de ser a causadora de todos os males da humanidade, trazendo o pecado, a infelicidade e a morte sobre a terra. Seu misterioso ciclo menstrual, o líquido amniótico, cheia de odores e de secreções… a mulher passou a ser considerada impura, manchada, mal-dita! 

O sangue é universalmente considerado o veículo da vida. Tanto é que biblicamente se diz que sangue é vida. O sangue, misturado à água da chaga de Cristo, é a bebida da imortalidade. Ele corresponde ainda ao calor vital e corporal, além de ser o veículo das paixões. De acordo com muitos mitos antigos é o sangue que, misturado à terra, dá origem aos seres, às plantas e até mesmo aos metais. O sangue derramado em sacrifício proporcionava, para os povos antigos, a fertilidade, a abundância e a felicidade. Portanto, a simbologia do sangue é riquíssima e está ligada à vida, à fertilidade, à imortalidade. E, da mesma forma que a simbologia do sangue remonta às civilizações mais antigas, também a menstruação tem sido objeto de inúmeros significados simbólicos nas mais diversas culturas. 

Os relatos do Antigo Testamento falam da “impureza” da mulher menstruada. E na Antiguidade os egipcios acreditavam que, quando as esposas ficavam longo tempo afastadas de seus maridos, não mais menstruavam. Porém, o que não se pode negar é que a fecundidade, a maternidade, os mistérios do nascimento e da menstruação são manifestações naturais de poder. E a mulher e seu misterioso ciclo menstrual, intrerrompido durante a gravidez para trazer à vida um novo ser, deixou marcas profundas na psique humana. 

Os sentimentos mais precoces de inveja e de terror continuam ligados à sexualidade feminina. Pois, em seu corpo reside o mistério da multiplicação da vida e, através de seu seio se concretiza o mistério da multiplicação do alimento. Assim, ao longo dos tempos, a Mulher recebeu vários nomes: Lilith, a lua negra, transgressora; Eva, responsável pela queda do homem e pela expulsão do Paraíso; Pandora, portadora da caixa em que se ocultavam todos os males que assolam a humanidade, além da esperança; Medeia, devoradora dos próprios filhos; Medusa, Hydra, Fênix… Morgana, Circe, Lorelei… Yara, Yemanjá… e tantos outros. 

E o mais trágico disso tudo é que esse medo do feminino, da mulher e de seus mistérios, fez com que elas fossem responsabilizadas por todo o mal que afeta a humanidade, levando-as, inclusive, às fogueiras da inquisição. A verdade é que a mulher, fonte da vida e da fertilidade sagrada mas, também, senhora dos mistérios ligada ao lado obscuro da vida, apavora o homem fazendo-o sentir-se ameaçado de submergir, o que é o oposto da fecundidade. Submergir quer dizer afundar, desaparecer… E fecundidade tem a ver com a capacidade de criar vida. E a vida, esse poder miraculoso de renascimento, multiplicação e abundância, quando em mãos femininas precisava ser cerceada e controlada pelo terror que inspirava, pelo poder que continha. 

E a religião acabou sendo uma das formas utilizadas para controlar o feminino, a mulher e seu poder de fecundidade. Dessa forma, Vida e Morte – Morte e Vida, o ciclo veraz e voraz que todos nós temos que enfrentar, passou a ser dicotomizado, invertendo-se os papéis. A mulher, que por sua natureza tinha o poder de dar a vida, ficou ligada à morte. E o homem “apoderou-se” do poder de criar a vida. 

O relato criacionista do Antigo Testamento, alicerçado na tradição patriarcal, disseminou no imaginário coletivo que a mulher foi formada a partir da costela de Adão, tendo sido criada para servi-lo. Passou-se a acreditar, inclusive, que o princípio ativo no processo de geração de uma nova vida dependia, exclusivamente, do sêmen masculino. O ventre feminino nada mais era do que um espaço vazio, preparado para acolher o sêmen masculino. Este, sozinho, “fabricava” a nova vida a surgir. 

Acredito que esse medo atávico, arcaico, ancestral, explica a dicotomia veiculada durante séculos em nossa cultura ocidental de origem judaico-cristã. Para se contrapor ao terror de submergir no feminino, tentou-se fazer a separação do inseparável. Defendeu-se a racionalidade sem corporeidade, sem emoção, e a materialidade sem espiritualidade, numa tentativa de se valorizar uma humanidade desprovida de suas humanas dimensões. Cindindo a Mulher, ela ficou sendo a Eva sedutora e fatal, personificação do mal. E Maria casta, virgem e dessexualizada, a personificação do bem. 

É a imagem do feminino dicotomizado, cindido, idealizado. Pois o ideal pode-se abstrair e, assim – pura ilusão – pode-se controlar, submeter, dominar. O sentimento e a emoção, a sedução e a paixão, a corporeidade e a sexualidade, o toque e o prazer… Tudo virou pecado, pecadinhos ou pecadões, numa hierarquização funesta, estigmatizante e preconceituosa. Entrelaçados nos pecadões encontravam-se corporeidade, sexualidade, feminino, mulher! Personificando o encanto e a sedução, emoções à flor da pele, corpo, mulher e sexualidade tornaram-se o símbolo maior do pecado e da perdição desde os tempos mais imemoriais. 

Spinoza fez uma análise histórica da Biblía, colocando-a como fruto de seu tempo. Criticou os dogmas rígidos e os rituais sem sentido nem poder, bem como o luxo e a ostentação da Igreja. Contra a visão antropocêntrica da divindade, para ele, Deus tem conhecimento das coisas que criou. Dessa forma, conhece os pecados, porém, estes só existem na mente humana. E, para esse pensador somos modos finitos de Deus, partes da natureza infinita de Deus...

Foto: O nascimento de Afrodite 

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