Meus
amigos, com a melhor das intenções, têm se queixado, dizendo que há muita
tristeza no intervalo das coisas que escrevo. Essa observação mexeu
comigo. Fez-me lembrar uma crônica que escrevi faz muito tempo. Era
sobre a poeta Helena Kolody que eu acabara de
descobrir. Seus poemas não são alegres. São alegres-tristes.
Dentre
os escritos da Helena Kolodi encontrei esse mínimo poema: “Buscas ouro nativo entre a ganga da vida. Que esperança infinita no
ilusório trabalho...Para cada pepita, quanto cascalho”.
Gosto
de ler as Escrituras Sagradas. Mas leio como quem garimpa ouro.
Para se encontrar uma pequena pepita quanto cascalho há de se jogar fora!
Acho até que foi arte de Deus... Foi ele mesmo que misturou cascalho e
pepitas, alegria e tristeza, prá separar os maus dos bons leitores. Os
maus leitores não sabem separar as pepitas do cascalho...
Nas
minhas garimpagens pelas Escrituras Sagradas encontrei essa pepita: “Melhor é a tristeza que o riso. Porque com a
tristeza do rosto se faz melhor o coração.” Esse texto me apareceu na
memória quando eu pensava sobre uma pergunta estranha que me perseguia:
“Pode-se ensinar compaixão?” Essa pergunta surgiu quando minha neta, sem razão
alguma, deixou a mesa no meio do almoço e foi para a sala da televisão chorar.
Fui atrás dela para entender a razão do seu choro. Ela me disse: “Vô, quando eu vejo uma pessoa chorando
o meu coração fica triste junto ao coração dela...”
Sem
o saber a menina havia definido o que é a compaixão. Eu não disse. Quem disse
foi a Adélia, que “ a poesia é pura
compaixão”. A poesia é triste. E acrescentou, prá ninguém entender, “por prazer da tristeza eu vivo alegre”.
Haverá
uma pedagogia da tristeza? Estranho pensar que um professor, ao iniciar o seu
dia, possa dizer para si mesmo: “Vou
ensinar tristeza aos meus alunos...” Eu mesmo nunca havia pensado nisso. E
todos os terapeutas, não importando a sua seita, em última instância estão
envolvidos numa batalha contra a tristeza. E agora eu digo esse absurdo, que
tristeza é prá ser ensinada, prá fazer melhor o coração.
A
poesia nasce da tristeza. Alberto Caeiro era amigo da sua tristeza: “Mas eu fico triste como um por de sol
quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma
borboleta pela janela. E concluiu: “Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que
deve estar na alma...” Num outro lugar Fernando Pessoa escreveu algo
mais ou menos assim: “Ah! A imensa felicidade
de não precisar de estar alegre...”
Existe
uma perturbação psicológica ainda não identificada como doença. Ela aparece num
tipo a que dei o nome de “o alegrinho”. O alegrinho é aquela pessoa que
está, o tempo todo, esbanjando alegria, dizendo coisas engraçadas, e querendo
que os outros riam. Ele é um flagelo. Perto dele ninguém tem a liberdade de
estar triste. Perto dele todo mundo precisa estar alegre... Porque ele não
consegue estar triste, o alegrinho não consegue ouvir a beleza dos noturnos de
Chopin, nem sentir as sutilezas da poesia da Cecília Meireles e nem
gozar o silêncio triste da beleza do crepúsculo. Sempre alegrinho, na sua
alma não há espaço para sentir a compaixão. Para haver compaixão é preciso
saber estar triste. Porque compaixão é sentir a tristeza de um outro.
Houve
um menino que chorou ao ler a estória do O patinho que não aprendeu a voar.
Aconteceu assim: o seu pai comprou o livro esperando que ele fizesse o seu
filho dar muitas risadas. Voltou no dia seguinte muito bravo. Trazia o livro na
mão, para devolvê-lo. Ao invés de dar risadas, ao final da estória o seu filho
pôs-se a chorar. A estória é, de fato, triste. Eu a escrevi para o meu filho
que estava passando por uma crise de vagabundagem. O seu prazer nas vagabundagens
era tanto que ele não queria saber de aprender. O patinho também não queria
saber de aprender. Não pode voar com seus irmãos quando chegou a estação das
migrações.
O
menininho tinha razões para chorar? Não. As razões do seu choro não eram dele.
Eram do patinho. Ele sofria o sofrimento do patinho. O seu coração batia junto
ao coração do patinho. Mas o patinho não existia. Era apenas um personagem
inventado de uma estória do mundo do “era uma vez”. E o menino sabia disso.
Mas, a despeito disso, ele chorava. Aqui está um dos grandes mistérios da alma
humana: a alma se alimenta com coisas que não existem.
Eu
havia levado minha filha de seis anos para ver o E.T. Ao fim do filme ela
chorava convulsivamente. Jantou chorando. Resolvi fazer uma brincadeira: “Vamos no jardim ver a estrelinha do E.T!” Fomos,
mas o céu estava coberto de nuvens. Não se via a estrelinha do E.T.
Improvisei. Corri para trás de uma árvore e disse: “O E.T. está aqui!” Ela me disse: “Não seja tolo, papai. O E.T. não existe! Contra ataquei: “Não existe? E porque você estava chorando
se ele não existe?” Veio a resposta definitiva: “ Eu estava chorando porque o E.T. não existe...”
Volto
então à pergunta que fiz sem saber a resposta. O menino chorou ao ler a estória
do patinho. Mas o patinho não existia. Minha filha chorou ao ver o filme do E.
T. Mas o E.T. não existia. Pensei então que um caminho para se ensinar compaixão,
que é o mesmo caminho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à
existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema, o teatro. As
artes produzem a beleza. E a beleza enche os olhos dágua...
Meus amigos podem ficar tranqüilos.
Sou triste sim. Mas minha tristeza “é
natural e justa e é o que deve estar na alma...” Volto às Escrituras
Sagradas: “Com a tristeza do rosto
se faz melhor o coração.” É isso que desejo ensinar aos meus alunos...
Rubem Alves
Foto Vera / Entardecer em Angra dos Reis, 2008
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