A festa da páscoa se presta a muitas significações. Muitas delas
perderam totalmente sua referência ao seu sentido primordial como festa de
libertação da escravidão de todo um povo. O que predomina hoje é seu
sentido comercial: bela ocasião para o comércio e para o consumo.
Para judeus e cristãos constitui uma celebração fundadora: para os
primeiros a passagem de uma situação de escravidão para uma situação de
liberdade numa terra cheia de promessas. Para os segundos, os cristãos,
representa a passagem da morte para a ressurreição, entendida como a
completa realização da essência humana. Jesus, executado na cruz e
sepultado, rompe o túmulo e volta à vida, agora transfigurada.
Para nós hoje a páscoa pode significar uma metáfora da atual situação
da Terra, nossa devastada morada comum. Nisso reside a metáfora: o
Planeta como um todo está passando por uma severa páscoa, uma perigosa
passagem (páscoa). Estamos dentro de um processo acelerado de perda: de
ar, de solos, de água, de florestas, de gelos, de oceanos, de
biodiversidade e de sustentabilidade do própro sistema-Terra.
Sofremos estarrecidos com os terremotos no Haiti e no Chile e com os
tsunamis no sudeste da Asia e neste ano de 2011 no Japão. Estes eventos
extremos revelam a situação de caos em que penetrou a Terra. Quando as
perdas vão parar? Ou para onde nos poderão conduzir? Podemos esperar como
na páscoa que após a sexta-feira santa de paixão e morte, irrompa a
ressurreição?
Precisamos de uma olhar retrospectivo sobre a história da Terra para
lançarmos alguma luz sobre a crise atual. Antes de mais nada, cumpre
reconhecer que terremotos e devastações são recorrentes na história
geológica do Planeta. Existe uma “taxa de extinção de fundo” que ocorre no
processo normal da evolução. Espécies perduram por milhões e milhões de
anos e depois desaparecem. É como um indivíduo que nasce, vive por algum
tempo e depois morre. A extinção é o destino dos indivíduos e das
espécies, também da nossa.
Mas além deste processo natural, existem as extinções em massa.
A
Terra, segundo geólogos, teria passado por 15 grandes extinções desta
natureza. Duas foram especialmente graves. A primeira ocorrida há 245
milhões de anos por ocasião da ruptura de Pangéia, aquele continente único
que se fragmentou dando origem aos atuais continentes. O evento foi tão
devastador que teria dizimado entre 75-95% das espécies de vida então
existentes. Por debaixo dos continentes continuam ativas as placas
tectônicas, se chocando umas com as outras, se sobrepondo ou se afastando,
movimento chamado de deriva continental, responsável pelos terremotos.
A segunda ocorreu há 65 milhões de anos, causada por alterações
climáticas, subida do nivel do mar e aquecimento, eventos provocados por
um asteróide de 9,6 km caido na América Central. Provocou incêndios
infernais, maremotos, gases venenosos e longo obscurecimento do sol. Os
dinossauros que por 133 milhões de anos dominavam, soberanos, sobre a
Terra, desapareceram totalmente bem como 50% das espécies vivas.
A Terra
precisou de dez milhões de anos para se refazer totalmente. Mas permitiu
uma radiação de biodiversidade como jamais antes na evolução. O nosso
ancestral que vivia na copa das árvores, se alimentando de flores,
tremendo de medo dos dinossauros, pôde descer à terra e fazer seu percurso
que culminou no que somos hoje.
Cientistas notáveis (Ward, Ehrlich, Lovelock, Myers e outros) sustentam
que está em curso um outra grande dizimação que se iniciou há uns 2,5
millhões de anos quando extensas geleiras começaram a cobrir parte do
Planeta, alterando os climas e os níveis do mar. Ela se acelerou
enormemente com o surgimento de um verdadeiro meteoro rasante que é o ser
humano através de sua sistemática intervenção no sistema-Terra,
particularmente nos últimos séculos.
Alguns falam da inauguração de uma
nova era, o antropoceno, quer dizer, o ser humano se fez uma força
geofísica de destruição. Peter Ward (O fim da evolução, 1977, p.268)
refere que esta extinção em massa se nota claramente no Brasil que nos
últimos 35 anos se estão extinguindo definitivamente quatro espécies por
dia. E termina advertindo:”um gigantesco desastre ecológico nos
aguarda”.
O que coloca o sentido da vida em crise é a existência dos
terremotos e tsunamis que destroem tudo e dizimam milhares de pessoas. E
aqui humildemente temos que aceitar a Terra assim como é: ora mãe
generosa, ora madrasta cruel. Ela segue mecanismos cegos de suas forças
geológicas. Ela nos ignora, por isso os tsunamis e cataclismos são
aterradores. Mas nos passa informações.
Nossa missão como seres
inteligentes é descodificá-las para evitar danos ou usá-las em nosso
benefício. Os animais captam tais informações e antes de um
tsunami fogem para lugares altos. Talvez nós outrora, sabíamos captá-las e
nos defendíamos. Hoje perdemos esta capacidade. Mas para suprir nossa
insuficiência, temos a ciência. Ela pode descodificar as informações que
previamente a Terra nos passa e nos sugerir estratégias de autodefesa e
salvamento.
Como somos a parte consciente e inteligente da própria Terra, estamos
ainda na fase juvenil, com pouca acumulação de experiência e de saber.
Estamos ingressando na fase adulta, aprendendo melhor como observar e
manejar as energias da Terra. Assim, por exemplo, não podemos construir
casas ao pé de montanhas que por sua configuração geofísica podem deslizar
como nas cidades serranas do Rio de Janeiro. É irracional levantar
gigantescas usinas nucleares junto ao mar em regiões sujeitas a terremotos
e a tsunamis como ocorreu no Japão.
Se não escutarmos a natureza e
não obedecermos a seus ritmos, ela nos punirá implacavelmente.
Não porque queira, porque ela segue seu curso traçado em sua natureza
geofísica. Mas através de nossa observação, cuidado e ciência, podemos
evitar que seus mecanismos internos não sejam tão destrutivos. Temos muito
ainda a crescer, a aprender, a amadurecer e a respeitar.
No atual momento a Terra pende da cruz. Temos que tirá-la de lá
e ressuscitá-la enquanto é tempo. Só então tem sentido desejarmos uns aos
outros: Feliz e ensolarada Páscoa.
Leonardo Boff é autor de Nossa ressurreição na morte, Vozes
2007.
Enviado pela Inês Bento
Foto Daniel Beukers / Borboleta: símbolo de renascimento