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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

SOBRE A TERNURA...


“Pureza de coração é desejar uma coisa só.”
Foi assim que Kierkegaard a definiu, a pureza. Puro é aquilo em que não há misturas; é uma coisa só.
A paixão é pura porque vive de uma coisa só: a imagem da pessoa amada. Não se trata de uma imagem mais bonita que as outras. É uma única imagem que apaga todas as outras.
O apaixonado só pensa na pessoa amada. Sempre.
Os assuntos que fazem a conversa do cotidiano não lhe interessam. Bem que ele gostaria de falar sobre seu amor, mas se cala sabendo que ririam dele.

Camões, no episódio de Inês de Castro, escreveu que ela caminhava
'Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.'

Se não havia ouvidos humanos a quem pudesse dizer o nome que tinha gravado no peito, que as árvores, a relva e as pedras fossem depositárias do seu segredo – um único nome.
[...]

O amor começa quando colocamos uma metáfora poética no rosto da pessoa amada.
A paixão é uma experiência estética. Está ligada à contemplação da beleza.
A pessoa pela qual se está apaixonado é bela. Não é que ela seja bela – é o olhar apaixonado que a torna assim. Porque não vemos o que vemos, vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos belos ao seu olhar. Quem, ao olhar para uma mulher, pensa em sexo não é um apaixonado. O apaixonado sorri ao contemplar a amada dormindo, sem tocá-la. O corpo de lado, o rosto sobre o travesseiro, os olhos fechados, o suave ressonar, a camisola suspensa deixando ver a calcinha – é uma imagem de paz, de tranqüilidade. E um momento de ternura. Há um desejo de acariciá-la, mas a mão se contém; nenhum movimento dele deverá interromper a beleza da cena. Nela, os impulsos sexuais estão proibidos.

O sexo dos adolescentes e dos jovens se parece com furúnculo inchado – túrgido, vermelho, dolorido, que busca se livrar do incômodo. O que se busca não é a experiência amorosa, é rasgar o furúnculo para que o pus saia, trazendo alívio. E o esperma não se parece com pus? Quando o orgasmo acontece, numa mistura de dor e prazer, o furúnculo se esvazia e o corpo fica em paz. Pode até ser que nesse momento o parceiro se esqueça da mulher ao seu lado, vire as costas para ela e durma.
Foi sobre esse sexo que Freud escreveu. Era o único que ele conhecia. Era o sexo que Tomas, personagem de "A insustentável leveza do ser", fazia com suas namoradas. Mas uma delas protestava: “Não quero o prazer, procuro alegria...”
O sexo-furúnculo prescinde da ternura. Tomas não sentia ternura por suas amantes. Elas eram objetos para o alívio de seu sexo-furúnculo. Ele as usava. Não as amava. O amor mora no olhar terno que sorri ao contemplar o rosto da pessoa amada.





Rubem Alves. Cantos do Pássaro Encantado:
sobre o nascimento, a morte e a ressurreição do amor.
Campinas, Ed. Verus, 2008. pp. 24-26.

Um comentário:

ney disse...

Disse bem o Rubem Alves, como sempre. Belo texto. ney/