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sexta-feira, 23 de abril de 2010

BULLYING...

 Rubem Alves
 

Eu fui vítima dele. Por causa dele odiei a escola. Nas minhas caminhadas passadas eu o via diariamente. Na quela adolescente gorda, de rosto inexpressivo, que caminhava olhando para o chão. E naquela outra, magricela, sem seios, desengonçada, que ia sozinha para a escola. Havia grupos de meninos e meninas que iam alegremente, tagarelando, se exibindo, pelo mesmo caminho... Mas eles não convidavam nem a gorda nem a magricela. Dediquei-me a escrever sobre os sofrimentos a que crianças e adolescentes são submetidos em virtude dos absurdos das práticas escolares. Mas nunca pensei sobre os sofrimentos que colegas infligem a colegas seus. Talvez eu preferisse ficar na ilusão de que todas as crianças e todos os adolescentes são vítimas. Não são. Crianças e adolescentes podem ser cruéis.

Bullying é o nome dele. Fica o nome inglês porque não se encontrou palavra em nossa língua que seja capaz de dizer o que bullying diz. Bully é o valentão: um menino que, em virtude de sua força e de sua alma deformada pe lo sadismo, tem prazer em intimidar e bater nos mais fracos. Vez por outra crianças e adolescentes brigam em virtude de desentendimentos. São brigas que têm uma razão. Acidentes. Acontecem e pronto. Não é possível fazer uma sociologia dessas brigas. Depois da briga os bri guen tos po dem fazer as pazes e se tornar amigos de novo. Isso nada tem a ver com o bullying.

No bullying um indivíduo, o valentão, ou um grupo de indivíduos, escolhe a sua vítima que vai ser o seu “saco de pan cadas”. A razão? Nenhuma. Sadismo. Eles “não vão com a cara” da vítima. É preciso que a vítima seja fraca, que não saiba se defender. Se ela fosse forte e soubesse se defender, a brincadeira não teria graça. A vítima é uma pe teca: cada um bate, e ela vai de um lado para o outro sem reagir. Do bullying pode-se fazer uma sociologia porque envolve muitas pessoas e tem continuidade no tempo. A ca da novo dia, ao se preparar para a escola, a vítima sabe o que a aguarda.

Até agora tenho usado o artigo masculino – mas o bullying não é monopólio dos meninos. As meninas usam outros tipos de força que não a força dos punhos. E o terrível é que a vítima sabe que não há jeito de fugir. Ela não conta aos pais, por vergonha e medo. Não conta aos professores, porque sabe que isso só poderá tornar a violência dos colegas mais violenta ainda. Ela está condenada à solidão. E ao medo acrescenta-se o ódio. A vítima sonha com vingança. Deseja que seus al gozes morram. Vez por outra ela toma providências para ver seu sonho realizado. As ar mas podem torná-la forte.

Freqüentemente, entretanto, o bullying não se manifesta por meio de agressão física, mas por meio de agressão verbal e atitudes. Isolamento, caçoada, apelidos.

Aprendemos dos animais. Um ratinho preso numa gaiola aprende logo. Uma alavanca lhe dá comida. Outra alavanca produz choques. Depois de dois choques o ratinho não mais tocará a alavanca que produz choques. Mas tocará a alavanca da comida sempre que tiver fome. As experiências de dor produzem afastamento. O ratinho continuará a não tocar a alavanca que produz choque, ainda que os psicólogos que fazem o experimento tenham desligado o choque e tenham ligado a alavanca à comida. Experiências de dor bloqueiam o desejo de explorar. O fato é que o mundo do ratinho ficou ordenado. Ele sabe o que fazer. Imagine agora que uns psicólogos sádicos resolvam submeter o ratinho a uma experiência de horror: ele levará choques em lugares e momentos imprevistos ainda que não toque nada. O ratinho está perdido. Ele não tem formas de organizar o seu mundo. Não há nada que ele possa fazer. Os seus desejos, eu imagino, seriam dois. Primeiro: destruir a gaiola, se pudesse, e fugir. Isso não sendo possível, ele optaria pelo suicídio.

Edimar era um jovem tímido de dezoito anos que vivia na cidade de Taiúva, no estado de São Paulo. Seus colegas fizeram-no motivo de chacota porque ele era muito gordo. Puseram-lhe os apelidos de “gordo”, “mongo lói de”, “elefante-cor-de-rosa” e “vinagrão”, por tomar vinagre de maçã todos os dias, no seu esforço para emagrecer. No dia 27 de janeiro de 2003 ele entrou na escola armado e atirou contra seis alunos, uma professora e o zelador, matando-se a seguir.

Luis Antônio, garoto de onze anos. Mudando-se de Natal para Recife, por causa do seu sotaque passou a ser objeto da violência de colegas. Batiam-lhe, empurravam-no, davam-lhe murros e chutes. Na manhã do dia fatídico, antes do início das aulas, apanhou de alguns meninos que o ameaçaram com a “hora da saída”. Por volta das dez e meia, saiu correndo da escola e nunca mais foi visto. Um corpo com características semelhantes ao dele, em estado de putrefação, foi conduzido ao IML para perícia.

Achei que seria próprio falar sobre o bullying na seqüência de minha crônica “O tato” que se iniciou com esta afirmação: “O tato é o sentido que marca, no corpo, a divisa entre eros e tânatos. É através do tato que o amor se realiza. É no lugar do tato que a tortura acontece”. Bullying é a forma escolar da tortura.

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