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sexta-feira, 9 de abril de 2010

CEMITÉRIO DE ÁRVORES

Rubem Alves 
Minhas memórias estão cheias de árvores. Menino, passando  férias no sobrado do meu avô,  e sem fazer o menor  ruído para não acordar os adultos que ainda dormiam e ressonavam ( se eles acordassem me enviariam de volta para a cama), eu me levantava e saia para a praça vazia. Lá eu me assentava debaixo de uma tipuana cheia de pássaros pretos  tagarelas.
No quintal da  minha casa eram as jabuticabeiras, as mangueiras, os pessegueiros, as laranjeiras, os limoeiros, as pitangueiras, o abacateiro...  Num galho de uma mangueira amarrei um balanço.
Na curva do trem havia uma gigantesca paineira, velhíssima, com um buraco no tronco... Diziam que era morada de sacis. Mas eu nunca vi nenhum. Depois da janta, lá pelas cinco, os homens e as crianças se ajuntavam à volta da paineira para contar casos de assombração. Terminado um caso ninguém desmentia. A roda de casos tinha de continuar. E prá continuar era só dizer: “Mas isso não é nada...”
E era obrigatório que todo  jardim tivesse um pé de jasmim e um pé de româ, de sementes mágicas prá trazer riqueza se colocadas na carteira na noite de passagem de ano.
E os ipês... Perguntado por um inspetor escolar, um menininho de oito anos respondeu:  “Rubem Alves é um homem que gosta dos ipês.” E disse bem porque somos o que amamos...
Faz muitos anos tive saudade do meu pai e escrevi sobre um arbusto que ele me deu. Começava assim:
“Tenho, no meu jardim, um pé de rosmaninho. Ele é, em tudo, igual a todos os outros pés de rosmaninho que há por esse mundo. Aquele cheirinho gostoso, quando a gente esbarra nas folhas; brancas, com uma gota de rosa, milhares de florinhas, quando chega o tempo; e as abelhas sem conta que juntam e zumbem. Gosto de me deitar na rede, perto dele, quando as noites são frescas e há aquela brisa... Às vezes me descubro  conversando com ele e já cheguei mesmo a agradar as suas folhas, como se ele sentisse. Nunca se sabe ao certo. Igual a todos os demais exceto numa coisa: foi o meu pai que me deu a mudinha, galho lascado, faz tempo. Meu pai já morreu. O rosmaninho guardou o seu gesto...”
Depois me apaixonei pelos caquis, que acredito serem a árvore da tentação no Paraíso. Ninguém resiste à cor, à forma, à textura, à lisura, à transparência, à lambuzeira, ao gosto de um caqui. ..
E uma árvore  cujo nome não sei, árvore de cemitério,  faz sombra aos túmulos de Abelardo e Heloisa, roubei umas folhas e pus num quadro. Olho pras folhas e me lembro do amor dolorido dos dois.
Em Minas, no alto de uma montanha, num lugar onde as ondas do mar se quebram- “o mar de Minas não é no mar; o mar de Minas é no céu, prô mundo olhar prá cima e navegar, sem nunca ter um porto onde chegar...” – plantei um cemitério, árvores para os meus amigos que haviam morrido e que iriam morrer.
É que existe uma crença de que, chegado o fim da vida, os mortos se transformam em pássaros que precisam de árvores para pousar. Na versão original  da estória da Cinderela não havia Fada Madrinha. O que havia era a sua mãe morta que, para não abandoná-la, passou a viver numa árvore onde moravam os pássaros que protegiam  a menina. Assim, plantei árvores para que meus amigos pudessem assumir a sua forma vegetal.
Vivo, inaugurei o cemitério de árvores. Plantei a minha árvore, um jequitibá. Acho que porque, no início do meu escrever  sobre a educação usei o jequitibá como metáfora do educador que, sem ter ido a qualquer escola, nasce selvagem no meio da floresta sem que ninguém plante.  Me arrependi. Achei a metáfora presunçosa, com mania de grandeza. Pudesse mudar eu plantaria  uma árvore que desse frutos, por amor aos passarinhos.
Um ipê amarelo para o Elias Abrão. Uma paineira rosa para o Jaime Wright. Uma magnólia perfumada para o Antônio Quinã. Um ipê branco  para o Guido. Um pé de româ para o Thomas. Para o João Pedro, um pau Brasil.
Aí me perguntei: por que plantar árvores só para os mortos? Pois Bach não compôs o coral “Alle Menschen müssen sterben”, todos os homens devem morrer? Pus-me então a plantar árvores para os vivos.
Duas  cerejeiras japonesas para a Tomiko e o Hans. O Jether e a Lucília quiseram uma árvore de louro e outra de  canela. Plantei também uma árvore para cada neta,  formando um “c”  com uma pracinha no meio. E, para o Ladon Sheats,  a majestosa liquidâmbar.
Há o caso da árvore que plantei para o Carlos Rodrigues Brandão. Aconteceu assim. Ele estava fazendo uma viagem de ônibus. Noite. Houve um acidente. Seu ônibus chocou-se com a traseira de um caminhão. Várias pessoas morreram. Seu rosto se espatifou  no banco da frente. O sangue começou a jorrar. Ele achou que iria morrer. Rezou então, agradecendo a Deus a vida maravilhosa que lhe fora dado viver. Repentinamente veio-lhe uma idéia no meio do sangue: “E a minha árvore? Eu não disse ao Rubem qual é a minha árvore!” O Brandão não morreu. Pode então me contar que sua árvore seria uma paineira branca. Já a plantei. Assim, quando ele desejar, poderá visitar a sua forma vegetal, tão bonita quando floresce... E também a árvore do John Lane, um  jequitibá rosa, muda que ele mesmo me deu. Meu jardim está cheio de presenças de ausências.
Esse jardim já não é meu. Não sei qual foi o destino das árvores. Nem sei se os seus nomes continuam os mesmos. Mas se  ainda fosse meu eu mandaria esculpir numa prancha de madeira esse curto poema de Alberto Caeiro que diz tudo o que é para ser dito:
“Ah, como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé da clara simplicidade de existir das árvores e das plantas. Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos...”

Um comentário:

ney disse...

Deliciosa leitura, uma viagem no tempo, nas coisas simples e sábias da vida, em harmonia com a natureza. Ótimo final de semana, paz, amor e alegrias. Abraço/ney.